Arroz Que se Cose Fala e uma Solidão Aurorizada
Capítulo I
Solidão Capeada; Clareira-Profecia
Sabia-me solitário. E sabia-me bem saber-me solitário. Entendia este leva-leva, de ser e saber que era, mais como rumo à tranquilidade do que como fatalismo ou fragilidade temida pelo homem contemporâneo. No entender dos outros (os solitários inconscientes dessa solidão), as redes sociais aparentavam ser o antídoto capaz de aliviar e enganar a solidão. Para mim, não passavam disso mesmo: de uma aparência. Supunha que o efeito dessas redes fosse, paradoxalmente, um boomerang que recordaria aos solitários a certeza dessa mesma fragilidade, expressa numa solidão terrena. Radicalizando o meu ponto de vista, as redes sociais suscitavam-me a impressão de me encarcerarem numa arena romana sem portas; de me enfiarem em plena luta de gladiadores. Descria na possibilidade de se tornarem um tubo de escape à solidão. Talvez por tencionar não escapar a essa solidão. Até porque me cansava e desistia facilmente das pessoas e dos laços que essas entre si criavam. Era um ótimo protagonista da Modernidade Líquida, portanto. Preferia debruçar-me em mim mesmo e autopsiar-me interiormente. Bastava-me a concentração em mim para valorizar e afirmar a pessoa que tinha escolhido ser. Soava-me bem fazer de conta que escrevia a minha existência de forma a terminar numa antologia de libertinagem. Viver para alguém iria marcar o fim do meu individualismo. Não estava pronto para tal; a estabilidade amorosa que observava em anónimos enamorados deixava-me instável. Por esta combinação de razões, deixei o leva-leva, de ser e saber-me solitário, vincar a minha adolescência.
Como se quisesse exorcizar essa solidão, ansiei viver numa zona a partir da qual fosse maior a vista para a cidade do que o acesso à mesma. Mandei então embutir habitação no alto de uma clareira recôndita. A casa onde cresci situava-se à beira-mar, e os anos aí vividos foram responsáveis por excluir esse dos meus cenários ideais à moradia: o vai-e-vem invariável das ondas enfastiava-me.
Elas moviam-se, é certo. Mas quase sempre ao mesmo ritmo. E eram sempre da cor do céu, fora as alturas em que nelas a maré enrolava algas carmim, cipreias, bivalves mortos e búzios já quase amorfos, de tanto embater em rochas até findar na areia. O cheiro a sal também era sempre o mesmo. Apesar de tanto sal, era precisamente condimentos que faltavam naquele cenário: uma pitada de imprevisível, duas de mutável, e três de alquimia. Pretendia viver num local onde as metamorfoses e as fissuras a que o passar e o pesar do tempo me subordinavam fossem sentidas tanto em mim como na flora e na fauna que me envolvessem. Queria viver-me, ainda mais do que o costume, à mercê da indomável Lei da Natureza; submeter-me à influência psicológica que cada Estação exerce. A floresta parecia-me agir em conformidade com as pitadas que eu procurava: a flutuação atmosférica que distinguia as estações evidenciava-se nas ramagens das árvores – ora nuas e orvalhadas, ora farfalhudas de tão carregadas de folhas; a paleta cromática dispunha de tons ora serenos, ora garridos, a perturbar a vista, mas não demasiado. Cada nova flor que brotava ou velha árvore amputada significavam novos cheiros, e, daí, novos estímulos ao olfato. Parece paradoxal: escolher um sítio que não mexesse demasiado com a solidão, mas ter como critério a consonância entre a envolvência e eu mesmo. À falta intencionada de pessoas, houvesse, pelo menos, floresta e atmosfera.
Talvez me encontrasse num processo de ascensão a uma lucidez e através dele constatasse que a minha convicção de ser solitário era baça.
Talvez a minha solidão fosse meramente capeada.
Do alto dessa clareira, a rua do Maná, principal artéria da cidade, era o meu ponto de fuga. Nos primeiros anos, era na espera de regozijo que me sentava na varanda e direcionava o olhar para essa artéria. Esperava pelas horas de ponta da movimentação social, num jeito quase stalker, mas sem pretender nada mais além do prazer voyeurista que motivava a azáfama dos desnorteados que migravam de loja em loja. Dava-me um certo gozo espreitar a vida de quem não conhecia e nada me dizia-anónimos que se separavam de mim por um muro transparente.
Fazia questão de garantir que o meu próprio tempo de espera fosse alacre. Enquanto esperava, entretinha-me a fumar algumas cigarrilhas de baunilha (fumava-as como tentativa de tornar vitalício aquilo que sabia efémero- o fumo e, inerentemente, o tempo) e a preparar um gin: quatro ou cinco cubos de gelo, consoante a intensidade do apetite ao regozijo, um raminho de hortelã, uma flor de anis e alguns mirtilos desidratados cortados ao meio, para que as sementes pudessem contribuir para o sabor final. Assim, combinando a frescura aromática com a observação social, elevava o regozijo ao quadrado. Copo numa mão e nada na outra, que abria, para sentir a brisa a trespassar, invisível como um fantasma e como o muro que me separava dos anónimos.
Por mais louros que mereça o meu génio, pelo empenho na confecção de um gin perfeito, não é com o intuito de discutir receitas e de que forma o estado de espírito influencia a escolha e a quantidade dos ingredientes que me ocorre escrever. Pretendo, sim, narrar como é que a solidão se transformou em messianismo, do qual me fiz porta-voz, abrindo portas àqueles cuja voz estava silenciada. Não através de maná, mas de arroz selvagem.
É da minha varanda-observatório que escrevo. Ou não tivesse sido precisamente aqui que tudo começou – como se a escolha desta clareira para sítio de viver tivesse sido um presságio para a função social que viria eu a desempenhar. Irónico como quase exorcizei a solidão em que cresci ao escolher este para sítio, mas foi precisamente ele – nomeadamente a varanda, a enxotar essa solidão. Ou talvez a minha solidão fosse, definitivamente, capeada.
Capítulo II
Pela primeira vez, um Pássaro Sem Nome
Não sei quando foi que o inalei, fumei ou injetei pela primeira vez. E isso pouco ou nada interessa – sei e interessa, sim, que na altura em que me mudei para a clareira já era um drogado viciado no pensar. Culminei numa overdose de pensamento excedente, porque demasiado intenso. A intensidade era tal, que excedia a minha destreza de contrariar o pensamento excessivo – conjunturas sociopolíticas eram para mim tão merecedoras de pensamento quanto os grãos de areia necessários para fazer cimento. Considerei curar essa overdose com outra, desta vez nada metafórica – entreguei-me a substâncias químicas, para acalmar e intervalar os excedentes pensamentais. Claro está que a solução era meramente temporária, de curto-médio prazo e, quando a moca se dissolvia, a primeira overdose vinha à tona, novamente. Lúcido acerca da inoperância das substâncias, resolvi ir caminhar pela floresta, numa madrugada nebulosa e orvalhada.
As pedras estavam forradas de musgo verde e macio; os pompons amarelos e fofos sobressaíam das folhas aguçadas dos eucaliptos. Avancei aos solavancos, entre escorregadelas nesse musgo, feridas que as silvas não desbravadas abriam na minha gabardina, e recomposições do passo. Cheguei, por fim, a uma colina repleta de flores que pouco ultrapassavam o meu calcanhar, baixas e homogéneas. Se não me encontrasse pouco distante da linha do Equador, julgaria ter diante de mim uma tundra.
Havia uma única árvore, nua. Num dos ramos, e a contrastar com a camuflagem de tons pálidos e nudes, um pássaro amarelo assobiava. Não digo que não tenha, por segundos, pensado sobre ele, mas, pelo menos, o meu estado de petrificado contemplador deveu-se a uma percepção sensorial, isenta de juízos ou conceitos. Pela primeira vez, perdi o paradeiro da minha tendência compulsiva de nomear o que estava a contemplar. Ainda assim, relacionei-me com ele: era amarelo, pequeno e assobiava. E isso foi-me suficiente. Não sabia qual a espécie, e nem sequer mergulhei no meu arquivo referencial para a tentar identificar. Sem dar por isso, releguei a interpretação do pássaro e da melodia que cantava. Não precisei de tal para preencher aquele que já era um momento sensorialmente cheio. Não sei se andava à cata de abrigo ou alimento; ou se estava ali, tal como eu, meramente a contemplar. Não sei por que, na altura, não quis saber – só agora penso sobre ele. Porque, pela primeira vez, tive diante de mim um pássaro sem nome. E isso, por si, bastou-me.
Capítulo III Sem sombra de luz e de Chopin; A solução estava no Tacho.
Depois de alguns virares de ampulheta, o motivo da observação alterou-se, e o regozijo transformou-se numa briga interior. Deixou de ser a azáfama entre os migrantes de loja em loja que me alentava o debruço, mas sim os outliers que foram surgindo junto às portas dessas lojas – não para contemplar as montras, mas para, a elas encostados, dormir. Ou, simplesmente, para estar e existir. Na espera do dia em que chovesse do céu algum naco de pão ou níquel.
A alteração da configuração social da Rua do Maná – eis o motivo dessa minha metamorfose interior.
Entre as brechas que a cal branca já gasta abrira nas paredes, interrompidas pelas montras translúcidas, e os corpos que dessas paredes faziam cabeceira, era algum o mimetismo: também nesses corpos havia brechas, abertas na pele pela imundice que a falta de lavagem ia gerando.
À semelhança das montras, também as minhas retinas eram translúcidas o suficiente para absorver a assimetria entre as camadas sociais que faziam daquela tela a última que queria pendurar nas paredes da minha existência. Afligiu-me a possibilidade de ser desmazelado e permitir que os outliers passassem de outliers à regra dominante e viessem a ocupar a maior fatia social. Pela primeira vez, perturbou-me o posicionamento de mero observador, e reconheci a minha ânsia de entrar na tela e intervir no status quo em que vivia aquela gente sem-tecto nem chão próprio. Apesar de (ex) solitário, conhecia-me demasiado orientado por princípios Kantianos, pelo que seria incoerente permitir-me permanecer na posição de espectador. Por conseguinte, consentir essa sensação de incoerência agravaria o conflito interior. Na primeira vez que topei os sem-teto, assombrou-me a relação entre o pânico de querer intervir versus não saber como, acabando por fumar em poucas horas todo o maço de cigarrilhas. Claro está que fumá-las não resolveu a crise. Ávido por soluções, olhei para os candeeiros que me rodeavam na procura de luzes que inspirassem as minhas, mas, como se estivessem a confluir comigo, também estavam apagados. Quis-me alvo de ideias, mas nem sinal de setas a rumar a mim ou a sugerir-me por onde seguir. Tive fome de uma omelete, mas estava sem ovos. «Chopin! Vai ser Chopin!» Exclamei. Como se houvesse em Chopin qualquer coisa que só ele pudesse dar à audição e, como se tratasse de um cateter, essa qualquer coisa funcionasse como alento absorvido pelos tímpanos e injetado no imaginário. Como se Chopin fosse capaz de mitigar a situação política e económica descrita e salvar o povo; até um solitário capeado como eu encontra na música respostas metafísicas. Porém, a rematar nas adversidades:
tinha a agulha do gira-discos partida, pelo que nem em Chopin poderia procurar alento. Não sei o que mais me murchava o ânimo: se não poder ouvir Chopin, ou ter o gira-discos inoperante. Tal como as pessoas, também os objetos têm múltiplas facetas. E o seu estado influencia o nosso. Ou, pelo menos, o meu, por se tratar em particular do gira-discos.
Apesar de o desespero me continuar a martelar, senti o cheiro a esturro- não resultante da situação social na Rua do Maná, mas vindo da cozinha, onde tinha arroz ao fogo. Tinha-me esquecido que o arroz cozido a granel estava quase pronto já antes de vir para a varanda. Saí da varanda-observatório e dirigi-me à cozinha. Foi então que se deu a epifania serendipitosa:
e se o antídoto estivesse, literalmente, nas minhas mãos?
Quer dizer, no tacho. Talvez o antídoto fosse, precisamente, esse arroz.
Talvez o tacho fosse o meu Easter Egg.
Capítulo IV
Boomerangue indesejado; ainda assim, Kan’t
Tinha o meu tio e a minha mãe em casa. Mudaram-se para cá no dia em que se diagnosticou o adoecimento eterno, eufemismo que suaviza a estimativa de dois anos de vida do meu tio. Como eu era o único possível pilar da família que restava com vitalidade suficiente para os acolher, incumbiram-me de os alojar e canalizar parcela da minha existência para a sua- ainda mais provisórias do que a minha, se imperasse o tempo natural das coisas. A verdade manda dizer, porém, que pouco ou nenhum fundamento via eu nessa responsabilização. Tinha mais que fazer os meus verdes anos do que suster um espírito já morto e cujo corpo para lá caminhava (e que nem isso, caminhar, conseguia). Tinha conseguido o feito de sair cedo de casa e alçada paterna, e não constava nos meus planos ser confrontado com esse boomerangue que me iria tornar eremita. Por isso, confesso que foi genuína a tentação de recusar ajudá-los. Ainda assim, essa orientação kantiana enxotou os sintomas de egoísmo, tornando-os meros resquícios. Talvez a maneira como lidei com o meu livre-arbítrio, decidindo agir segundo a máxima que quis tornar-se lei universal / regra válida para todos os seres racionais, fosse prenúncio da minha tarefa messiânica que estava por vir. Imagine-se o que seria dos sem-tecto se todos os com-tecto cedessem à cómoda tentação de ignorar e resignar...
Após um dia de experimentação gastronómia, na procura daquilo que o homem conseguisse comer sem custo nem esforço, o arroz passou a ser o ingrediente menos inócuo da despensa. Barato, calórico, macio e facilmente derretível na boca, tornou-se um garante da sua subsistência- mais do que eu, ao contrário do que esperavam e acreditavam os restos da minha família conservadora ocidental. Ambicionei que o arroz se preparasse sozinho ou que O Deus da minha mãe fosse uma marionete que o cozesse.
Quando o cozia só para mim, preferia comê-lo diretamente da panela e quase de rajada, para chegar o mais rápido possível ao fundo e poder raspá-lo: as raspas queimadas do arroz serviam-me de sobremesa. Porém, com a minha mãe acamada e o meu tio acamado-quase-defunto, ultimamente o arroz tinha que ser feito para três, apesar de considerar que mais pragmático seria fazer só para dois, já que o prato destinado ao meu tio regressava à cozinha com uma porção de arroz quase igual à que havia no momento em que fora servido- os escassos dentes do homem eram insuficientes para mastigar os bagos, e, suspeite-se, engoli-los inteiros não deve ser tarefa duradouramente aguentável. Apesar de estar certo da razoabilidade da minha decisão de os ajudar, houve momentos de recaída, em que reminiscências da tentação de os abandonar tomaram conta de mim. Experienciei a agonia de ver o piano cobrir-se de estratos de pó e as teclas a ficarem bafientas; as flores murcharem de dia para dia, virando palha seca e magra, à semelhança dos sem-tecto; matutei sobre a maneira com que nos entregamos e acolhemos as coisas, presos à garantia ilusória de serem nossas quando, na verdade, não passam essas coisas, tal como nós, de meras folhas caducas, porque provisórias. O que foi já não é, tal como o que será também ainda não é. Logo, a morte não existe na vida. Por mais paradoxal que aparente, entendia esta filosofia como ideal – evitando inúteis esforços, entregas e histerias; entregando-me a um estoicismo que me facilitasse a compreensão e aceitação da ordem natural das coisas. Por ser este o meu pensamento, já anteriormente tinha provado o sabor do dever dogmático que seria cultivar a família- a depressão da minha mãe aquando da morte do meu pai exigiu-me um redobramento de esforços que eu não pretendia. Para um miúdo de dez anos que, em rigor, pouco ou nada conhece de maneiras de solucionar crises existencialistas, nem seria legítimo impor uma coisa dessas. Já quando ele estava no hospital, zarpava de casa tampenas a minha mãe adormecesse. Ia para a rua, jogar à macaca com os sem-tecto da minha rua– os sem-tecto também existiam, na altura, apesar de não serem mediatizados em massa, como aqueles a quem dei arroz. Ir à rua era meio caminho andado para levar a bofetada de quem me conhecia apesar de eu não conhecer – “Não tens vergonha? O teu pai a morrer e tu aí como se nada fosse?” Talvesse esta falta de pensamento estóico por parte dos meus desconhecidos tivesse contaminado o pensamento da minha família – caso contrário, não me teriam incumbido, novamente, de os suster. “Não posso fazer nada sobre o assunto. Ele vai morrer, de qualquer forma, ao passo que há vivos cá fora por manter, e que não sabem quando se vão.” Por mais que as tentemos reaver, há coisas que, simplesmente, morrem.
Capítulo V
Pela Rua do Maná,
os abutres do revólver transformam os Sem-Teto em Maná
Sacudi a menoridade de mim num dia em que liguei a televisão. “Manifestantes saem à rua para contestar a penúria” passava no rodapé. Irou-me a velocidade com que passava o rodapé; tão rápida, que acelerou também a velocidade das minhas palpitações. Como se o meu peito fosse um bombo e as baquetas fossem aqueles miseráveis repórteres e alinhadores do telejornal. Àquele ritmo que passava o rodapé, só olhos de falcão o topariam. Como se a conjuntura fosse merecedora de um tempo de antena similar ao de um reclame publicitário. Não. Deveria ser lentamente projetada nos ecrãs dos telespectadores, para aumentar a probabilidade de estes absorverem e interiorizarem a situação, incendiando a ânsia de intervir.
Peguei numa nesga de pão de centeio, já duro, vesti uns trapos e fiz-me à estrada, em direção à Rua do Maná, para apalpar o terreno. Cheguei à Praça dos Querubins, onde permaneci, a analisar a romaria dos manifestantes, em jeito de flaneur. Senti a tentação de olhar para o céu que a ideia de verticalidade vinda dos pináculos góticos da catedral suscitava. Valeu-me o meu agnosticismo para reaver a certeza de ser a minha razão incapaz de fundamentar a afirmação da existência de ivindades. Abandonei o céu, desci o olhar, pestanejei, e foquei-o nos manifestantes. Nuns dos vários pés sem-teto, encalhou um dos pés de quem possui tecto, mas se preocupa com os primeiros. Na mão, o megafone a ecoar a rima denunciadora:
“A memos: without ceiling and bread, there is no Demos!”;
a versão dos mais anarquistas (e criativos) adornava-se de um (legítimo ?) calão:
”Fuck you, neo-aristocracy of blue blood!”
Ou “Suck garlic instead of money, ghoulish unharmed nobility!
Disse eu que vesti uns trapos? Queixei-me eu de o meu pão estar duro? Falta de sensatez minha, constatei, ao aproximar-me de quem nem trapos tinha e até por pão duro suplicava. Senti um nó na garganta, como se tivesse engolido uma ameixa inteira.
Todavia, por mais alto que bradasse a rebelião, o Estado fazia-se de surdo. Imaginei que, em vez de Chopin, talvez Beethoven, por também ele ter sido surdo, confluísse melhor no processo de conseguir alento.
Moderei os pensamentos metafísicos ao aperceber-me da minha existência sublunar. A brotoeja de me saber apenas vigilante tornou-se urticante, fazendo propagar no corpo um frio e um arrepio. Retive o fôlego, apurei os sentires, de forma a apalpar plenamente o terreno e reter o máximo possível, levantei-me do banco da Praça dos Querubins e percorri a Rua do Maná de lés a lés. Numa quina recessa do cruzamento com a Rua dos Mártires, um sem-tecto improvisava um edredom com jornais encardidos; três montavam casebre junto a caixotes do lixo, onde chafurdavam ora por objetos-que reutilizavam para ir atualizando a decoração do casebre, ora por restos alimentares, com que enganavam o corpo mirrado.
Ao mesmo tempo que uma mademoiselle quase não aguentava o impasse de não saber qual o mais opíparo colar de madrepérolas Dolce & Gabanna, um sem-tecto quase não se aguentava de pé, acabando por fazer da montra encosto.
Concluí que o problema já não era a velocidade com que passava o rodapé na televisão, mas sim o facto de se ter recorrido a um rodapé para passar o problema. Que rodapé televisivo seria suficiente para denunciar a conjuntura ali exposta?
No entretanto, vi reflectida na mesma montra uma câmara de filmar; olhei para trás e vi mais duas; mais três, quatro; várias; demasiadas câmaras de filmar; apontadas para o sem-tecto que quase não se aguentava de pé. Inerente às máquinas, vi fome; deviam estar também a morrer de fome, os repórteres. Ou mercenários, antenados pelo fito de se sustentarem financeiramente, fito este desprovido de noções de razoabilidade e, sobretudo, de accountability; ou abutres, porque necrófagos, por entenderem os sem-tecto como maná que dariam a comer aos telespectadores. Eles, que não careciam de maná na mesa, ansiavam também por maná. Olhe-se para esta ironia:
quem mais precisava de maná era o maná dos repórteres.
O rodapé tinha-se convertido na imagem / mercadoria, os quais, no fundo, se igualavam- eram ambos acéticos e virariam manchetes homogeneizadas por leads similares, que, tal como o maná, murchariam no dia seguinte à circulação nas bancas; imagens que teriam um efeito anestésico, estimulando a imunidade dos espectadores, que entenderiam o sem-tecto da fotografia como “só mais um”, acomodando-se e resignando-se à realidade, essa que, aliás, também constava da sua realidade, enquanto realidade humana.
Indoutos abutres, por privilegiarem macabramente a imagem da desgraça, ao invés de investigarem e escrutinarem a raiz e as suas causas políticas.
Atrás desta carência de debruço profundo não ficavam os leitores ou espectadores: eu quis aliviar o galopar das palpitações ao ver o rodapé saindo de casa e abalando para a rua do Maná. E o resto? Quantos dos leitores não-passivos apontariam o ultraje, tirariam apontamentos, transfeririam a sua energia para quem não a tinha, a situação denunciariam, exerceriam o seu dever cívico enquanto usufruidores de uma (ainda que tingida e sombreada) democracia?
E, ainda, os meros passantes na rua: quantos é que seriam capazes de ver além da roupa borbotada, substituindo o discurso depreciativo pela análise das histórias de vida que tinham conduzido a essa roupa borbotada dos sem-tecto?
A corrida ao maná assemelhava-se a uma parada fúnebre, onde, em vez de flores à campa, se levavam câmaras, cujos obturadores mais pareciam revólveres e gatilhos, que os abutres disparavam.
A solução também não passaria por alterar o formato da cobertura jornalística. Seria necessária uma estratégia ressonante como um eco, e não uma fugaz notícia em que tropeça o navegador digital, e que só é lida se o grau de aborrecimento vivencial desse navegador despoletar.
Talvez, caricaturando-se, os abutres até competissem entre si, especulando sobre qual teria arranjado o melhor masterpiece, que é como quem diz, o pedaço de carne em que a bicada tivesse sido mais rentável / o frame que maior dor transmitisse. Algo como:
-“Eishh, o meu sem-tecto estava a chorar... consegui um macroplano da lágrima e tudo!”
-“Really? Eu filmei um a rastejar até ao lixo. De certeza que a minha peça vai ter mais views e tração do que a tua!”
Oxalá andasse por ali Baudelaire e me ajudasse a transformar o martírio colossal num poema. Não havia, porém, filantropias ou altruísmos a exaltar.
Poetizar os abutres só iria mitigar a relação necrófaga entre os que comem e os que são comidos, por não ter o que comer.
Capítulo VI
Das raspas do arroz queimado à certeza de se estar vivo
Após ter apalpado o terreno com a vista, estava na hora de cruzar o meu tacto com o tacto de quem precisava de um empurrão à noção de estar vivo. Mais ou menos à semelhança do que costumava fazer comigo, ao comer as raspas queimadas do arroz e propositadamente deixar queimar a cebola do refogado- o sabor a esturricado era mais forte, provocando no paladar uma sensação gustativa que me relembrava sentir e, por isso, existir. Chegava a ser extremista neste ritual, ao ponto de adicionar malaguetas ao arroz. Nessas vezes, comia-o de olhos fechados para não conseguir prever quando vinha a malagueta à boca e assim extasiar-me doridamente com o ardor na língua e nas bochechas, que sentia até não conseguir suportar. Por mais bizarro que pareça este meu deleite, era
a forma de me manter vivo o suficiente para poder continuar a fazer os outros viver. E esquecer, por momentos, o fardo que o meu tio acamado quase-morto me fazia carregar.
O arroz era uma materialização metafórica perfeita da igualdade que eu pretendia: encarar cada
sem-tecto como um dos bagos uniformes que, embalados, dariam consistência ao pacote
(sociedade). Utópica ou não, era esta a linha de pensamento pela qual me regia. Dar arroz aos
pobres. Tal como o arroz cresce quando é cozido, queria engordar pensamental e fisicamente os
subnutridos.
Como se o tivesse antropomorfizado, o arroz teria ainda o valor simbólico do conhecimento: quanto mais ingerissem, mais resistentes ficariam, mais durariam e, portanto, mais tempo teriam para poder ler o mundo, nomeadamente a pobreza a que estiveram expostos, enquanto epítome da pobreza planetária (circunscrevê-la no Hemisfério sul é redutor) e sintoma da desordem política. Que murro contra-sistema seria serem os protagonistas a fazer justiça social, depois de engordados espiritualmente, além de fisicamente? A fé nesta chance conduzia-me. Seduzia-me. E queria-me orientado por essa sedução.
Arranjei uma panela com maior dimensão cúbica, para que pudesse passar a cozinhar arroz em grandes proporções; num pedaço de cartão, desenhei a planta geométrica de um cubo, molde que serviu para fabricar mais dez. Recortava, colava e forrava o interior. Enchia cada um dos cubos com dez colheradas de arroz, e saía porta-fora, rumo à Rua do Maná.
Caixinhas de papelão com arroz dentro da minha mochila fizeram parte da minha rotina durante um ano. Sempre por volta do meio-dia, dirigi-me à Rua do Maná, onde as distribui. Duas para cada sem-tecto: uma para o almoço, outra para o jantar. Os caixotes do lixo, a montra Dolce & Gabbana e o edredom de jornais faziam parte da rota que semi-deliniei, mas não me limitei a cumpri-la. Sabia que aquilo que não estava à minha vista também existiria. Por isso, comecei a explorar outras ruelas perpendiculares à Rua do Maná, em busca de novos sem-tecto. Dos vinte
sem-tecto que, em média, alimentei por dia, houve dois que maior atento meu roubaram: Joseph e Aurora.
Primeiramente, Joseph besbicou os bagos como um pássaro recém-nascido que ainda não sabe utilizar o bico. Depois, engoliu-os numa assentada. Contou-me como tinha ido parar aquele abismo sem sentido nem rumo. Joseph tinha saído de casa aos dezoito, passando a viver com o amigo que, em rigor, era o dealer que lhe arranjava droga. Este foi o seu subterfúgio durante os anos em que o som do cinto do pai, que o usava como chicote nas costas da mãe, e as marcas do metal das fivelas destruíram o ambiente familiar. Após ser despedido, sem rendimentos suficientes para ajudar o amigo a sustentar as finanças da casa, ficou sem-tecto para onde ir.
Como se os passados de Joseph e Aurora dialogassem no presente sem saberem, a droga (subterfúgio de Joseph) foi a razão de Aurora também ter ficado sem-tecto. Filha de pais toxicodependentes, Aurora decidiu pôr fim à sua imersão no ecossistema pútrido do apartamento, saído debaixo desse tecto, e aventurar-se. Apesar da determinação auspiciosa, o facto de viver numa vila pequena em que todos os habitantes se conheciam impediu-a de arranjar um emprego: a visão estereotipada que a rotulou de “filha dos toxicodependentes” custou-lhe a recusa generalizada no mundo dos com-tecto, acabando por ficar sem-tecto.
Contou-me que, certo dia, tinha passado por si uma mulher bonita, de stiletto e lenço de cetim, que a recordou de uma modelo que tinha visto numa revista usada em tempos para esfregar a sujidade da pele.
Em frente à montra onde se costumava deitar, uma rapariga vendia bugigangas diversas e obras de arte. Aurora apontou para o estaminé da rapariga, confessando-me “Aquela imagem da nuvem suspensa no copo... nunca vi uma nuvem suspensa num copo; aquela nuvem quase me convence de que ainda vale a pena sonhar...” disse-lhe que era Magritte. “É surrealismo. É precisamente para isso que serve o surrealismo- para nos fazer sonhar; nos aproximar do impossível.” A Aurora marcou-me por vários motivos. O que culminou no desfecho que contarei, adiante. Um deles: o facto de Magritte ser para ela o que as raspas do arroz queimado eram para mim: um empurrão à noção de sentir e, por isso, de existir.
Capítulo VII
É só à superfície que a borracha apaga
(no papel, fica o vinco do carvão)
Numa noite pouco estrelada, bateram repórteres à porta de casa. Quase consegui ver o seu interior a ferver por eu ter aberto a porta. Porém, e à semelhança do que faço com o arroz quando ainda não está cozido o suficiente, voltei a tapar o tacho – fechei a porta, após ter recusado entrevista e tê-los visto a engolir em seco a facada. Há coisas que devem ser assim – como uma árvore que cai na floresta, mas ninguém sabe, porque ninguém esteve lá para noticiar. A árvore caiu na mesma, e isso algum peso há de ter tido no cenário aborígene do qual constava. Para além disso, virar vedeta não entrava nos meus planos prescritos, nem seria agora que iria entrar. Até porque não seria coerente com um solitário como eu almejar por visibilidade. Ou solitário capeado. Seja como for, a minha intervenção social está longe de suficiente – o trecho dos sem-tecto que alimentei a arroz são apenas epítome da problemática que consta nos cromossomas do Regime. Enquanto os genes políticos não sofrerem alteração, os sem-tecto continuarão sem-tecto. Fui um messias, mas, colmatar essa problemática exige discípulos, doravante. Mais ou menos como uma borracha que apaga um risco traçado a carvão no papel- aquilo que a borracha apaga é meramente a cor do carvão, à superfície.
Debaixo da cor apagada, fica um traço indelével- apesar de transparente, é visível, porque ficou
decalcado no papel, portanto inapagável. A diferença entre as filosofias é que não foi carvão que
usei para traçar esta história, mas arroz.
Capítulo VIII
Fomos Lua Cheia, num Quarto Crescente
Nesta noite, reina uma lua em quarto minguante. As minhas retinas refletem o seu reflexo no riacho, como efeito ricochete. Os candeeiros estão todos acesos. Está uma noite daquelas que mais me deleitam. A Aurora saiu, foi buscar o gira discos à loja de arranjos.
As diferenças entre mim e a Aurora são listáveis, mas nem por isso suficientes para nos desunir: eu prefiro anis no gin, ela prefere um pau de canela; eu fumo cigarrilhas da Kent, ela prefere os cigarros slim da Pall Mall; eu como as raspas do arroz que ficam coladas no tacho, ela nem arroz sabia o que era, antes de eu lhe servir um prato, e ressuscita através de Magritte. Os cabelos cor de noz moscada da Aurora deram cabo de mim. Quando os vi, entendi ser a Aurora o grão de arroz que a minha existência carecia para que fosse um pacote consistente; quem me conseguiu aproximar do ideal de prazer enquanto bem último da existência, sem ses, o que, para um céptico pseudo-solitário como eu, era um feito merecedor de atento e reflexão.
À semelhança do pássaro amarelo e pequeno, reencontrei nela o prazer de contemplar sem pensar no que contemplo. Por mais prazeroso que me fosse contemplar o exterior dos anónimos, experimentei olhar para o interior da Aurora. Arranquei-lhe o interior: os medos, os prazeres, as aspirações. Como se estivesse a limpar o pó do meu piano e a reaver a lucidez das teclas brancas.
Graças a ela, lavei as mãos do homem solitário que julgava ser e concluí que, afinal, A minha solidão não era capeada, mas ilusória.
Voltámos, de mão dada, à rua do Maná, para que ela visitasse o sítio onde viveu. O vento vinha sem darmos por ele, como um fantasma, fazendo balançar as linhas de cabelo da Aurora, como se de uma ramagem frágil se tratasse. Refleti: por quantas vezes recusamos visitar o sítio onde vivemos por julgarmos nada de novo nos dar, e damos por nós surpreendidos pelos contornos nunca topados; fachadas nunca contempladas; vento-fantasma que, agora, em vez de querer afastar, quis para sempre, se daí adviesse a certeza de para sempre ter a imagem dos cabelos da Aurora balançando.
Desta vez, poderia não só olhar para as obras, como também interpretá-las e identificá-las. Gostou tanto de Magritte que, agora, sempre que há maçãs verdes em casa, leva uma à cara, simulando as figuras dos quadros do pintor, e pergunta-me, retoricamente- Olha, quem é que eu te faço lembrar?
Sabíamos que a obra mais bonita era a que nós pintávamos no cavalete da nossa história- em tons berrantes, como os da floresta, quando é primavera.
A noção de amor arrebatador e finito ecoava tragédia, até conhecer a Aurora. A minha vertigem de comer acabou na primeira trinca que lhe dei. Efervesceu nesse momento a sensibilidade em relação ao outro e à possibilidade de me virar, finalmente, para alguém. Talvez fossem as circunstâncias que mudassem a predisposição e as possibilidades de recomeçar um sentir. Talvez a propensão ao sentir sempre tivesse existido, mas estivesse adormecida. Talvez se tratasse de uma questão de intensidade, amassada e determinada por essas circunstâncias- que tocam a intensidade da existência, mas não a existência em si. Como beatas mal apagadas e ainda fumáveis.
A Aurora chegou a casa. Finalmente, é desta que consigo ouvir Chopin. Oxalá traga ela mais paletes de Kent, que se acabou o último cigarro do último maço. Ah, como já devem ter concluído, a Aurora foi uma das sem-tecto a quem dei arroz. Houve uma aurora em que a convidei a vir comer arroz cá a casa.
Desde então, e ao contrário da lua que nos ensopa de luz, este quarto e esta casa nunca mais foram minguantes; fomos lua cheia; fomos lua de quarto crescente; também nunca mais houve uma única aurora passada sem A Minha.
Outra vez arroz!, exclamou a Aurora, ao destapar o tacho. Outra vez arroz. , confirmei eu. «Até parece que não gostas!» Desta vez, o arroz tinha como fim ser enrolado em fitinhas de folhas de nori; por cima ou no núcleo, levaria com barras meticulosamente talhadas de salmão. Tinha descoberto que sushi explodia as papilas gustativas e as terminações nervosas da língua da Aurora.
No fundo, tinha descoberto que éramos ambos esquerda-caviar.
Tenho os bagos de arroz, o meu compositor predileto e o meu bago de arroz à espera.
Termino assim a minha história de tentar reinventar a humanidade e reinserir os sem-tecto na sociedade;
história que, em verdade, (enquanto não observar discípulos que a continuem; que se empacotem a fim de empacotar os bagos que estão fora do pacote, ansiando, eles mesmos, por bagos na goela; que cozam arroz para coser os bagos humanos uns aos outros; querubins que vão para a Praça dos Querubins e para a rua do Maná dar maná aos sem-tecto), está longe de terminada.
Ana Rita Rodrigues