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Verve

Disseram-me que na distância podia residir a minha salvação. Disseram-me que se me afastasse de quem amava também podia salvá-los. O que não me disseram é que, com tudo isso, a afinal a minha liberdade não era total e passava a ser condicionada por forças maiores do que eu, maiores do que o mundo inteiro conseguia compreender. Então fechei-me em casa e transformei- me numa mulher-pássaro numa gaiola. 

Na segunda ou na terceira semana, apercebi-me de que padecia de um mal que desconhecia. Estaria a minha mente a ser envenenada pelos meus terríveis receios e sufocantes ansiedades? Os pássaros que passavam por mim, enquanto eu ficava na varanda a olhar para o escasso movimento na rua, escolhiam alguns dos ramos mais altos da árvore ali mesmo em frente e deixavam-se ficar lá a observar-me. Cantarolavam entre si. Possivelmente debatiam entre si a mudança drástica na ordem natural das coisas. Esses sons dos pássaros pareciam-me então os mais belos trinados que alguma fez escutei. 
Sempre que me percorria um leve arrepio nas costas, sabia que era altura do nascimento das minhas asas. Desde a minha adolescência que me nasciam asas lindas, cujas penas eram de uma brancura imaculada, e levemente douradas, como uma ave sagrada. Eram as minhas asas dos sonhos. A minha musa enviava-me esse sinal para que eu soubesse que podia escrever em qualquer altura. Abençoada musa, o quanto te amo! Quando a inspiração flui através de mim, os meus dedos mexem-se quase automaticamente sobre o teclado do computador, como se eu estivesse a tocar piano. 

Quando encontro palavras que expressam ao mais ínfimo pormenor o meu sentir, fico num estado de êxtase e voo dentro do meu quarto, atravessando o tecto para um portal que me leva a um mundo secreto. Não consigo refugiar-me aí agora. Tenho a mente vazia. A única coisa que vejo quando fecho os olhos é uma porta enorme, fechada a cadeado. Escusado será dizer que a chave não está comigo. 
A minha estranha doença atingiu-me as asas, escureceu-as e mirrou-as e até conseguir quebrar. E foi nesse instante que me esqueci de como era sonhar. Quando te esqueces de como se sonha, o que é feito do conceito que faz de ti um ser humano? O que te distingue dos demais seres vivos, animais ou plantas? Quem sabe se um dia se descobrirá que até estes conseguem sonhar! 

Quebradas as minhas asas, perdeu-se em mim o todo o significado e a conjugação do verbo amar e de todos os que signifiquem algo bom. Os meus lábios esqueceram-se de como abrir-se num sorriso. Renunciei à fé em algo superior a mim e à fé nas minhas capacidades e assim apaguei a chama da vela que iluminava o todo meu ser. Afastada assim bruscamente a minha musa, deixei- a morrer e eu próprio morri para o todo o sentir. Vejo-me como um monte de pedras impossível de voltar a ser um coração. Permaneço como que enfeitiçada, mesmo que vento sopre sobre mim a vida fresca com toda a sua força, no final é sempre vencido por um desconhecido poder que volta a juntar-me em pequenos montes. Mergulhei cada vez mais fundo na letargia da minha dor e quase deixei de existir. 

Até que num só dia tudo mudou. Determinada, percebi que não podia continuar a desperdiçar-me em lamentos, em recordações já sem data e sem cor e decidi deixar a cidade onde sempre tinha vivido. Abri a porta da minha gaiola e percorri ruas e avenidas completamente despidas de gente. Inspirada por uma desconhecida força, resisti à tentação de levar o passado como bagagem e parti de mãos vazias e sem saber qual o destino para onde viajava. Percorri incontáveis quilómetros, mas o cansaço fez-me bem. Deixei de sentir os músculos atrofiados. Caminhei até perder a noção de tempo e de espaço. Ainda que não soubesse a distância exata percorrida até àquele momento, já devia ter atravessado todo o mundo que conhecia. E em todo esse mundo as ruas estavam vazias. As pessoas nem sequer espreitavam das suas gaiolas, os monumentos fechados não tinham quem parasse diante deles para comtemplá-los, os carros estavam todos estacionados e somente os pássaros persistiam no seu reinado feito de canções. 
Só parei de caminhar quando a lua cheia se fez anunciar num uivo de um lobo e dei por mim na clareira de uma floresta. Ao longe vi uma luz que anunciava a existência de uma casa. À medida que me aproximava, o vento trouxe o som distante de um piano e decidi ir ao seu encontro, sem nada esperar encontrar.

Começou a nevar, mas nem mesmo esse frio imenso conseguia igualar aquele do abismo imenso que me havia congelado o coração e anulado assim qualquer emoção, matando em mim o verbo sentir. A casa era feita de madeira, uma construção antiga a precisar de obras, mas o seu interior, que pude observar através da janela, era acolhedor. 
Aquecida pela lareira, uma jovem mulher deixava as suas mãos dançarem sobre as teclas de um piano. A música inundou o meu coração e todo gelo à sua volta derreteu. Irrompeu um choro do meu peito, como se tivesse acabado de nascer outra vez. Deixei cair as lágrimas ao som do piano, ergui os braços e deixei que a neve me cobrisse com uma capa branca de viajante. 

​A dada altura, ainda que eu não tivesse feito qualquer barulho, a jovem apercebeu-se da minha presença. Só quando se voltou e me encarou é que eu percebi que éramos a mesma pessoa. Eu a sombra e ela a luz que me guiava. A gentil tecedeira dos meus sonhos e das minhas histórias! As teclas do piano continuaram a tocar sozinhas, enquanto ela atravessou a sala a correr para me abrir a porta. Recebeu-me de braços abertos e sorriu-me. Era como se estivesse à minha espera há muito tempo. Como se esperasse que eu a encontrasse. Envolveu-me num abraço tão suave que me fez recordar o calor da pura bondade humana que só se sente ao segurar uma criança nos braços. 

​Novas asas nasceram em mim e consegui novamente voar. Alcancei a lua e as estrelas e nada me impediu de subir tão alto, porque no meu coração ardia a chama do amor e esse divino calor. Encontrei-me em perfeito equilíbrio. Tornei-me como uma árvore: parte da terra e do céu. Aceitei tudo na minha vida, até os caminhos cheios de pedras e os desertos áridos que tive de percorrer até este momento de inigualável liberdade. Finalmente estava de novo em minha casa, mas aprendi a lição. Com os olhos da gratidão, deixei de chamar-lhe gaiola e passei a chamar-lhe caixa de sonhos.

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Ana Isabel Fernandes

Começou a dar os seus primeiros passos na escrita online há dezasseis anos, enquanto estudante universitária, em vários blogues focados no cinema, literatura e artigos de opinião. Neste ano de 2020, o mais desafiante da sua vida, decidiu dedicar mais tempo à sua velha paixão pela escrita, numa altura em que passaram doze anos desde que concluiu o Curso de Ciências da Comunicação, variante de Comunicação Social, pela Universidade do Algarve. Por isso «O Eco dos Pássaros» é a melhor oportunidade de mostrar o seu talento e se lançar na carreira da escrita.

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