voltar ao índice

O E-scravo Subversivo

Anda um barquinho no mar! Foi a primeira frase que ouviu, quando retirou os olhos da folha oficial timbrada que o chefe lhe tinha entregue, com uma ordem precisa e imperativa: António, este assunto é para resolver de imediato! Olhou para o mar, ainda absorto no que acabara de ler, definindo mentalmente como iria proceder para não levantar melindres. De facto, perto da praia, onde tinha acabado de beber um café com um pouco de açúcar refinado, cerca de quatro gramas do pacote por causa das ameaças de saúde, uma embarcação de pesca navegava às voltas, arrastando a ganchorra de ferro e rede da apanha de conquilhas.

O casal, na mesa ao seu lado, confirmava o que já sabia. Que os pescadores da terra não apanhariam nada naquele mar revolto, de vaga alta e permeado de algas e plâncton, águas boas para a captura de robalo e peixe-aranha, mas incapazes para desenterrar os bivalves saborosos, como os que a sua mãe abria nas papas de farinha de milho que costumava comer em dias de inverno. Quando era criança, lembrava-se bem, só comia aquela papa amarela se a mãe lhe derramasse leite alvo trazido à aldeia pelo leiteiro, acrescentado de açúcar amarelo, que cristalizava no frio à volta do prato. Era assim que confortava um estômago arrepiado e farto da única comida acessível de todos os dias. Voltou às suas preocupações de serviço.

Quando terminou o curso e se candidatou à polícia, sempre pensara que ficaria o tempo de trabalho na sua secretária de mogno velho, arrumando papéis, lendo as ordens de serviço e as leis do governo, mas nunca que viria a receber ordens do chefe para ir prender uma mulher. Pegou de novo na folha amarelada, com os cuidados extremos de um polícia desconfiado, para ler a ordem expressa, assinada pelo director da capital e que o chefe do seu posto tinha despachado para ele.

A mulher era uma jovem, podia ler-se a idade na folha, e trabalhava numa fábrica de conservas de peixe. E ele, que julgava que há muito tempo o cheiro a peixe cozido e as sirenes das fábricas se tinham extinguido. Na verdade, nunca mais vira aqueles ranchos apressados, vestidos de bibes de chita aos quadriculados e de fatos de ganga azul, tecidos comprados na Casa Verde para costurar por medida, ajustados aos corpos ondulados e fartos das mulheres e aos físicos tesos e esguios dos homens.

A jovem tinha o nome da sua mãe, chamava-se Maria Antónia. Na ordem escrita não constava mais nome nenhum. Talvez a polícia não os conhecesse, ou seria a rapariga que teria apenas dois nomes? Uma situação estranha nestes tempos de cidadania, em que o comum seria cada pessoa ter dois sobrenomes, apostos pela discriminação hierárquica de género: primeiro o da mãe e a seguir o do pai, deixando à paternidade a identidade perene. Lembrava-se de ter confirmado que a sua mãe também tinha apenas aqueles dois nomes. Maria Antónia, estava escrito no bilhete de identidade que guardara na caixa dos sapatos pretos sem cordões, comprados para calçar no funeral dela. Recordava-se de o ter olhado algum tempo, aceitando, por fim, o que a sua mãe sempre lhe dissera, que aquele era o seu nome, e chegava para ela, não descendia da nobreza da terra, nem tinha famílias de brasão e anel. Esqueceu aquela insistência sobre um nome vulgar, uma coincidência que também o chamava para a mesma família de palavras, através do nome que lhe deitaram ao nascer: António.

Dobrou a folha amarelada e guardou-a no bolso interior do casaco cinzento, bem assertoado ao corpo esguio, decidido a resolver aquela tarefa de uma vez por todas. Era a sua primeira prova de fogo como polícia do trabalho. Sabia que lhe tinham atribuído aquela acção para o testar. Ou tinha tomates para ir buscar aquela mulher prevaricadora e subversiva e interrogá-la como nos velhos tempos, ou então seria corrido para a aldeia decrépita e miserável onde nascera e crescera, entre estrumeiras, barracas e peixe seco. Endireitou o corpo ainda mais, como se quisesse ficar perto do céu, olhou e aspirou o perfume do mar naquela manhã luminosa e limpa, e entrou no carro eléctrico que havia comprado a crédito, caro, mas carregado de eficiência energética e limpo de combustíveis fósseis.

Dirigiu-se para a fábrica que ficava do outro lado da cidade, na margem do rio que bem conhecia. Fora nas suas águas que se tinha iniciado na vida adolescente do sexo e do roubo, primeiro com os jovens mais velhos das periferias operárias da cidade, depois, ele próprio se encarregou de chefiar o grupo. Foram os reis da praia, entre os primeiros turistas descidos no novo aeroporto, mulheres jovens, brancas como lulas frescas e 'camones' chatos como a potassa, que não largavam o pé das miúdas. No rio, denunciava já as suas qualidades de coragem e temeridade, lançando-se, de braços abertos, de cima da ponte ferroviária para as águas lodosas e baixas do rio na baixa mar. O Zé Merra tinha partido o pescoço, num mergulho na praia, mas esse era estúpido e não calculava o risco, que ele aprendera a medir, cheio de calculismos e previsões lógicas. Só uma profissão de prestígio físico e moral, ao serviço da pátria, o poderia esperar nos anos activos e estatísticos da vida profissional. Voltou a lembrar-se da tal Maria Antónia.

Que raio! Se ela era pouco mais nova do que ele e trabalhava ali naquela fábrica arcaica, onde a sua mãe deixara o corpo e a alma, mas ganhara artroses nas mãos e nas costas, ele deveria conhecê-la. Aquele nome, outra vez, a martelar-lhe os ouvidos e a calcar-lhe as têmporas. Desde que saíra da aldeia e rumara à capital da sua ambição, nunca mais voltara àquela terra. Agora que tinha sido transferido, ao abrigo da lei da mobilidade e da flexibilidade das aprendizagens de novas competências que o governo lá tinha inventado, logo teria de vir parar àquele lugar. Como se fosse obrigado a olhar-se, demoradamente, naqueles espelhos de feira da sua infância, ora côncavos, tornando-o mais anão do que criança, ora convexos, fazendo-o parecer o magricela do gigante de Moçambique que vira numa qualquer feira de São Martinho.

À porta da fábrica, o mestre de fabrico controlava o seu velho relógio de ponteiros. Debaixo do vidro, baço de muitos riscos, os ponteiros marcavam oito horas, e nada. Onde estavam os seus operários e operárias que costumavam marchar silenciosos e apressados, em fila, nos saudosos tempos da sirene estridente de vapor, que emergia da caldeira de carvão nos anexos da fábrica? Ele, que tinha levantado o braço, contrariado, para votar a favor daquele novo instrumento sonoro, gostava ainda mais dos idos da buzina. Nesses tempos, o seu homem percorria de bicicleta todo o bairro e arredores, soprando o grande búzio do mar, como se fosse o saxofone da filarmónica da recreativa rica, onde aprendera a tocar e da qual saía para feiras, romarias e saudações aos presidentes da república, eleitos ou não. Ele sabia de quem era a culpa daquela merda. Aquela Maria Antónia, armada em revolucionária, é que tinha proposto que a chamada para a fábrica fosse feita através do e-scravo, um dispositivo electrónico em forma de cravo que o presidente da república mandara conceber e entregar a todos os trabalhadores, para que assim pudessem estar em permanente contacto, vinte e quatro horas por dia, com todos os membros do gabinete gestor da nação.

Mas por que razão aquela gente, que vivia em barracas e era quase toda analfabeta, tinha que possuir telemóveis, plasmas de TV, automóveis trocados pelo abate e, ainda por cima, o e-scravo? Aquela flor de tecnologia que só os antigos alunos do liceu eram capazes de manobrar? Tudo por culpa daquela mania da representatividade mais participada do raio da cidadania, que o seu patrão, aquele de quem era um extremoso colaborador, agora tinha inventado.

Era por essas e por outras que qualquer uma – sim, porque as mulheres sempre foram mais escorregadias do que as enguias – vinha agora com ideias, como a Maria Antónia naquela reunião sobre a produtividade e a competitividade das conservas de peixe num mundo globalizado, que o presidente da câmara tinha convocado. O resultado de tal inovação e criatividade, de que toda a gente tinha a boca cheia, era o atraso sucessivo dos homens e das mulheres na entrada da fábrica.

O e-scravo tinha sido acertado pelo relógio da torre da igreja, a matriz do século dezasseis em permanente ruína física e moral, mas cuja torre ainda suportava as horas badaladas de sessenta em sessenta minutos. Aquela máquina nunca falhava. De tal modo que o seu filho Dulcério, apaixonado pelas guitarras eléctricas, utilizava aquela sonoridade para servir de metrónomo e de afinador da sua Fender.

Mas se aquele horário cristão nunca falhara, como era possível que o e-scravo andasse permanentemente atrasado, sobretudo nas horas de entrada, no início da manhã e após o almoço? A areia estava quente e fina, como sempre, escorregando com delicadeza por entre os dedos dos pés, grão a grão, voltando de novo a cair para definir as suas pegadas firmes e regulares. Aquela praia, na margem do rio, construída anos a fio com os aluviões mestiços das descargas de terra argilosa da serra e das enchentes das marés vivas do oceano, era o paraíso de Maria Antónia. E fora aquela praia que decidira olhar, de novo, quando ali regressara.

Tinha chegado à aldeia – a que ela preferia chamar bairro – após muitos anos de ausência na cidade, na qual trabalhara e estudara ao mesmo tempo. O que aprendera, em muitos empregos diferentes, definidos temporalmente pelo contrato individual de seis meses certos, enchia agora as quatro páginas do seu curriculum vitae. Nas mãos do mestre da fábrica, aquelas quatro folhas pareciam um livro, o livro da sua jovem vida de pouco mais de duas décadas que estava a entusiasmar o homem, defensor da instrução do corpo e da alma daquela juventude perdida entre televisão, drogas e sexo.

Começas amanhã, como manipuladora de peixe, que é por aí que todas as mulheres se iniciam neste mister, dissera-lhe o chefe de fabrico da produção, o topo da pirâmide industrial daquela fábrica de peixe. E remata-lhe, afirmando a superioridade masculina do território: Ou pensavas que entravas aqui como mestra, não? Lá por teres vindo da grande cidade e teres assentado o cu em muitos escritórios, não penses que és a mais competente. Nem essa aldrabice das novas oportunidades te serve.

Enquanto afirmava o seu mando, olhava os olhos e a face daquela mulher, quase impassível, tão calma quanto a figura da Mona Lisa, pespegada no quadro de parede do seu escritório, já gasta dos aromas de salmoura do peixe cozido e do levante oceânico de Marrocos.

Percebeu, de imediato, que a mulher era inteligente e talvez lhe viesse a dar problemas. Mas naquele verão quente, com mais sardinha no mar do que água salgada, não podia desperdiçar um par de mãos que se oferecia, provavelmente ágil e certeiro a cortar a cabeça da sardinha e ainda mais preciso a deitá-la na lata azeitada. A água do rio estava tépida, vinte graus de temperatura era pouco para um verão quente, mas talvez fossem as águas frias da serra que ainda desciam pelos calcários do barrocal.

Próximo da foz do rio, de certeza que a água convidaria a um banho de mar, como aqueles que, com as suas amigas de infância, dava nas pedras, os blocos de protecção da costa urbanizada da estância balnear, que a burguesia romântica da cidade acrescentara ao seu já farto lazer de todos os dias. Fora uma escolha indefinida que a tinha trazido de volta ao bairro. Não, não era nenhuma saudade, em que não acreditava, mas talvez o pagamento de uma dívida social que não queria deixar morrer. Fora aquela gente que tratara da sua mãe, amparando-a na desgraça e na insídia.

Sabia que, quando chegasse, os seus passos a levariam primeiro às areias que agora acariciava, e depois ao pátio de entrada da fábrica, onde estava o escritório do pai do Dulcério, o mestre que ditava, há muitos anos, o horário e o esforço impiedosos das mulheres, homens e adolescentes do bairro. Por isso, não tinha respondido aos agravos do mestre. Sabia que a fábrica estava sem mestra, a mulher que geria, sob as ordens do chefe de fabrico, o trabalho de todas as mulheres, manipuladoras, azeitadeiras, visitadeiras, batedeiras, e outras designações do mesmo grupo de trabalho. Mesmo que ele o sugerisse, sem a conhecer de lado nenhum, ela recusaria. Também a sua mãe, escudando-se numa falta de jeito em que ninguém acreditava, se tinha esquivado a exercer um mando que considerava desfavorável para com as suas velhas amigas, adolescentes de vestidos compridos e de cabelos frisados.

Naquela manhã, tinha preferido comer apenas uma sandes de queijo fresco de cabra, coberto com uma pequena folha de manjericão, que colhera de um vaso do seu quintal minúsculo. Sabia que algo iria acontecer. Um acontecimento que talvez mudasse a sua vida para sempre. Depois de tantas mudanças nas suas relações profissionais e sociais, estava agora na iminência de uma viragem decisiva da sua história.

Descontente com aquele controlo desmedido, e estúpido, sobre o horário de entradas e saídas da fábrica, marcado pela ditadura da sirene da caldeira a vapor do século vinte, tinha proposto o aproveitamento do e-scravo, um moderno 'gadget' que o governo tinha vendido a toda a população, em troca de um dia de salário para a nação. Aquela coisa servia para tudo. Para perguntar a toda a gente onde estava, marcar a hora do cabeleireiro, copiar nos testes da e-escola, ouvir os hinos da república e das claques de futebol, filmar os professores a tirar macacos do nariz.

Mas também era arma de vigilância nas casas de banho das empresas, proto-industriais ou de inovação, conselheiro contábil para debitar avisos sobre datas de pagamento dos impostos, indicador do dia de início do período menstrual, ou banco de estatísticas do número de hambúrgueres comidos no dia anterior. Por que razão não serviria também para avisar os homens e as mulheres daquela fábrica, da sua hora de entrada e de saída? Quando o plenário de colaboradores aprovou a ideia, pensou de imediato numa maneira de subverter o esquema.

Afinal, não é isso que fazem os criativos da tecnologia, pagos a peso de acções, que criam o antídoto a pensar no vírus de contágio da doença? Apenas com a introdução de um pequeno chip, adquirido na feira de velharias da cidade velha, instalado no disco de programação do servidor da fábrica, conseguiu que o e-scravo mais parecesse um Spartacus virtual. O aviso sonoro e altifalante aparecia sempre trinta minutos depois da hora certeira do relógio da matriz: Atenção a todos os colaboradores, homens e mulheres, está na hora do cumprimento ético das vossas obrigações, junto de quem vos permite o desenvolvimento são do corpo e a libertação da alma, por via do trabalho sereno e esforçado.

Vinde, pois! Filhos da puta, que estes miseráveis nunca mais chegam! O mestre rogava as pragas do costume, cuspindo em todas as direcções, especado em frente do portão da fábrica. O seu velho relógio marcava oito horas e vinte e cinco minutos e ele começava a vislumbrar, lá ao longe, à saída do bairro, as primeiras gangas azuis, entremeadas dos bibes quadriculados de branco e azul.

Hoje, aquela gente não se escapava. Havia de ficar sem a sua cabeça, que lhe andava a atormentar o sono e a prejudicar o fabrico das latas, cada vez em menor número nas contagens semanais. O inspector da firma já o avisara, junto do seu carro negro que amedrontava as crianças do bairro. Ou resolves a merda que trouxeste cá para dentro ou és tu que vais desta para melhor! Sabia que aquele aviso não era despiciendo.

O Barafacho tinha as costas quentes, e era dos tempos das madrugadas de esforço, arrancadas ao sono e ao lazer, das ofensas corporais às meninas, do roubo das cadernetas de trabalho, enfim, um autêntico negociante de escravos à jorna. Muito pior do que ele, pensara, um homem que se achava amaciado por aqueles convívios demorados com os proletários, ou pelas lições que gostava de dar aos jovens pilhos que lhe roubavam as uvas coração de galo ou os maracotões amarelos e brilhantes. Uma certeza tinha. Não queria perder aquele belo emprego de chefe, com mais de duzentas pessoas a seu cargo, as mordomias da casa próxima, com jardim e pomar de quintal, água canalizada e luz da companhia. Aquela Maria Antónia que se fosse lixar. Não fora ela que inventara aquela manigância da chamada com o e-scravo, e que o andava a roubar na produção de conserva e no prestígio do séquito da firma? Por isso se apressara a chamar a polícia de trabalho. Mas não fora fácil.

Teve que preencher um formulário 'online', ele que gostava tanto de deixar a sua caligrafia de escola técnica no papel pardo de manteiga, que tinha sempre sobre a sua secretária de castanho. E o pior, era que não controlava aquele procedimento, longe dos dias das cartas que iam e vinham nas mãos dos contínuos, ampliadas de decisões e despachos. O raio do formulário andou navegando, perdido no éter dos computadores, até receber aquele telefonema do chefe do posto da cidade, dando-lhe garantias de que o assunto se resolveria ainda no dia de hoje. A tal de Maria Antónia, de que ninguém tinha ouvido falar até ao dia em que o seu formulário chegara ao gabinete da capital, estava com os dias contados, melhor, os minutos. Tinha-lhe prometido o chefe que, pelas oito e trinta, o seu mais recente colaborador, o jovem António, lá estaria na fábrica para lhe tratar da saúde. O carro eléctrico rodava devagar, silencioso na sua bateria nova e pesada, nas ruas caóticas, atoladas de automóveis, carrinhas urbanas e camiões a caminho das praias, à espera de banhos de mar e de betão nas arribas.

Ao passar pelo velho bairro, conhecido como o comboio parado, lembrou-se do velho Lázaro e resolveu visitá-lo na sua casa. O velho edifício rectangular era uma sucessão de vinte e uma casas em quadrado, cada casa dividida em cruz, quatro quadradinhos para duas ou mais famílias. Lá se albergava quase meia centena de famílias, mulheres e homens, velhos e crianças, entalados entre paredes e cacos velhos, como se fossem sardinha em lata. Uma autêntica metáfora habitacional das latas de conserva de sardinha que todo o bairro produzia, de manhã à madrugada, sob uma hierarquia opressiva, cujo topo era ocupado pelo senhor Dom.

Lázaro abriu-lhe a porta da sua cabana, uma construção frágil de madeira e chapa, que ocupava, entre as outras cabanas, o espaço térreo frente à sua casa de alvenaria. Era na cabana que passava a maior parte do tempo, ocupado a remendar as suas velhas redes de pesca ou a pensar em ditos filosóficos sobre a pequena vida quotidiana. António lembrava-se bem de vários desses ditos.

Um dia, quando chegava da escola em correria absurda, para evitar o aguaceiro que já o ensopava até aos livros enrolados num saco de pano, ouvira o Tio Lázaro, calmo e pachorrento, a dizer-lhe ao ser ultrapassado: A melhor maneira de andar à chuva é caminhando devagar, entre os pingos da água que cai do céu, sempre no meio das gotas distanciadas, onde cabe uma pessoa. Falava como se todo o mundo o ouvisse, com a sabedoria de quem já afirmara tantas vezes aquilo que sempre o fizera pensar, mas a que os putos achavam apenas graça ou desprezavam, como uma maluquice. Sentado na tábua fofa do banco, ouviu Lázaro explicar-lhe quem era a tal de Maria Antónia.

Toda a gente na aldeia, quando ela era criança e até mesmo agora, depois de ter regressado à fábrica, a conhecia por Bia. Marias, eram muitas, quase todas as mulheres tinham essa nomeação e Maria Antónia era uma carga pesada para uma criança, trazida para a aldeia por uma tia apiedada da sua situação. Eureka!, saltou-lhe da boca, como se estivesse na aula de Ciências, no jogo predilecto do professor Esteves. Como se havia de lembrar deste nome, tal e qual o da sua mãe? Aquele sim, era-lhe mais do que familiar. Nunca tinha sido atraído por aquela miúda, levado por uma sedução adolescente, havia ali como que uma barreira transparente, uma areia movediça que o puxava para a afeição, mas que, ao mesmo tempo, o mantinha suspenso da relação, deixando-a afastar-se.

Do que se sabia, Maria Antónia tinha vindo para a aldeia, pela mão de uma tia, da casa de sua mãe, que estava doente e sem poder trabalhar na velha fábrica de sardinha. O irmão, um pouco mais velho, esse precisava de ser cuidado, estudar e seguir o seu caminho para um escritório ou para um dos bancos privados da cidade. Dois filhos eram demais. E a rapariga, depois de dois ou três anos a servir nas casas das 'madames' da estância balnear, poderia entrar na fábrica, primeiro como eventual, manipuladora de peixe diziam, que ele tinha sido pescador independente e livre toda a vida e não queria perceber nada disso. Depois, se tivesse mãos para cortar cabeças de peixe e meter sardinha em lata vazia, se fosse educada e não respondesse às graçolas e assobios de mestres e guardas, talvez não demorasse a entrar no quadro permanente, como levantadeira. Se mostrasse esperteza e tivesse a ambição dos empreendedores, como agora se chamam aos egoístas – Lázaro olhou-me crítico, pensou – depressa chegaria a mestra. Mas a rapariga tinha o feitio da mãe. Tudo o que cheirasse a aproximação aos mandadores, mestres ou mestras, encarregados ou apontadores, ela recusava, preferindo o ombro a ombro com as suas companheiras de bibe e lenço branco na cabeça.

A Bia até tinha o nome da mãe, segundo sabia, e esse parecia ser um nome de honradez naquela família. António construía, na sua cabeça, as respostas que procurava esquecer havia anos. A sua mãe sempre lhe escondera momentos da sua vida, para o poupar a preocupações, dizia. Pequenas memórias, aprisionadas nas suas lembranças de criança, olhares cúmplices de vizinhos, omissões de períodos da vida da família, aguçavam alguma desconfiança momentânea, com a qual não se quisera preocupar. Mas, agora, sentado frente ao Tio Lázaro, sabia-o, confirmando dúvidas e inquietações. Bia só poderia ser sua irmã. Sem qualquer rasto material que o afirmasse certo, mas como um sonho que tece devagar e reconstrói um quotidiano escondido. Não precisou do olhar complacente e premonitório do velho interlocutor. Lázaro sabia que, um dia, aquele seria o desfecho da história. O confronto dos dois irmãos cerzia uma ferida esquecida, mas abria uma encruzilhada sem fim. António levantou-se decidido e empertigado, nem se despediu do velho e caminhou rápido para a praia, onde saberia quem encontrar e o que fazer.

Na cumeada de uma duna, o e-scravo declamava com insistência o aviso estridente: … Vinde, pois! António pegou-o, ainda quente das mãos que o depositaram na areia fina. A pequena tecnologia marcava, num ecrã azul luminoso, as oito horas em ponto, trinta minutos menos que a hora acertada do seu relógio digital, meia-hora virtual roubada à fábrica, a que se seguiria, ainda nesse dia, mais outro tanto após o almoço. Olhou, ali perto, a entrada da fábrica, à porta da qual o mestre aguardava, resignado, a chegada de mulheres e homens, de e-scravo na mão mostrando o tempo de chegada.

Um tempo 'e-scravizado', que nunca chegaria aos calcanhares da hora certa da sirene da caldeira da fábrica, acertada pelo relógio da torre sineira da matriz. Nem à antecipação da correria assustada, atrás da rouquidão da música da buzina do mar, soprada pelo fôlego salgado do marítimo. No meio daquele rancho, nem o mestre, nem o polícia reconheceram Maria Antónia.

​Aquelas mulheres, novas ou velhas, Marias ou outras, de bibe quadriculado e de lenço branco, pareciam todas iguais, chegando ao mesmo tempo, com a mesma vontade e igual descaramento, sem qualquer e-scravo nas mãos, talvez fossem todas hologramas de uma Bia qualquer, diferente outra vez.

voltar ao índice

Helder F. Raimundo

Nasceu em Portimão em 1956 e vive em Loulé, no Algarve. É mestre em Educação de Adultos e tem curso de formação avançada de doutoramento em Formação de Adultos. Investiga e publica nas áreas da educação, das culturas, da etnografia e da etnomusicologia. É autor do livro sobre a história do Grupo Folclórico da Casa do Povo de Alte. Coordenou a edição do catálogo da Tradição Musical de Loulé.
Publicou microcontos nas revistas «minicontos», «minguante», «Letrário» e «Bestiário» e poesia na revista «Máquina do mundo»; dois poemas seus constam na Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, "Da Poesia IV". Foi colunista do jornal "A Voz de Loulé" e cronista pontual do jornal "barlavento". Coordenou o suplemento "a cultura" em "A Voz de Loulé" e o jornal virtual "a cultura é para se comer".

Helder Raimundo
Anterior
Anterior

Tudo Aquilo

Próximo
Próximo

Faena