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A Vida é Breve. A Arte é Longa.

Era difícil sentir a vida, por vezes me sentia completamente esgotado. Ficava na cama por horas, pensando em tudo ao mesmo tempo, até aquilo esquentar minha cabeça a ponto de eu sair correndo de casa para não colapsar.


Eu estava no auge da adolescência, sendo bombardeado e ameaçado pelos meus próprios pensamentos. Desci sozinho a avenida Tiradentes: a maior da pequenina cidade de Pederneiras, no interior do estado de São Paulo.

A chuva havia deixado a noite gélida e meus all stars encharcados, mas até que era boa, porque fazia exalar o cheiro molhado das flores na praça.

Eu caminhava rumo ao centro, aquele miolo que toda cidadezinha interiorana ostenta: com uma bela igreja, - onde havia se casado pelo menos duas gerações da minha família -, jardins, coreto e uma banca de jornal.

Os ornamentos e disposições dos postes e bancos deixavam claro que ali havia sido um lugar majestoso e elegante. Mas, nessa altura, parecia um tanto morto, respirando apenas com ajuda das histórias que havia servido como palco, e completamente solitário, não fosse pelos bêbados moribundos que faziam desses bancos, leitos para noites frias.

Meu avô tocava o saxofone e se apresentava todas as terças no coreto da praça com seus amigos da antiga banda militar. Não fosse pela minha presença, não haveria público algum para o concerto.

Quando me viu chegar, meu avô fez questão de levantar sutilmente as grossas sobrancelhas demonstrando quase imperceptível surpresa.

O velho italiano era taciturno e carrancudo, como aquelas pessoas maculadas por um grande trauma de guerra ou coisa que o valha, mas até onde eu sei, havia apenas lutado contra o desespero tranquilo de uma vida ordinária.
Ostentava um bigode altivo que, anos depois, fui descobrir que servia para esconder uma cicatriz que tinha no lábio. Eu ainda via meu avô com olhar de criança: quando se aproximava de mim, parecia ser enorme e, de certa forma, me intimidava. É engraçado notar como, à medida que vamos crescendo, os lugares e pessoas vão diminuindo de tamanho.

Quando eu era criança, tudo parecia uma grande viagem. Se eu vinha a esta praça no centro da pacata cidade de Pederneiras, parecia estar indo ao Ibirapuera. Estava o tempo todo entorpecido com a alegria do novo e meu coração parecia tão puro, que então, eu corria para lá e para cá, conversando com seres que não existiam e desfrutando de uma realidade tão plena e repleta de possibilidades.
Mas com 15 ou 16 anos, os pensamentos austeros me invadiam a cabeça sem assentimento e me deixavam sem escolha. Não fosse o comichão que eu já sentia ao olhar meu avô afinar seu instrumento, eu estaria deitado na minha cama naquela noite escura, lamentando alguma coisa sem nem saber ao certo o porquê e a relembrar os meus tempos de infância.

Mas ali, descendo até aquela praça, eu começava a arrepiar dos pés à cabeça quando do silêncio, se fazia música e com ela uma sensação extraordinária - que eu ainda não entendia -, mas me fazia estar ali presente e leve. Sentindo a vida. Todo aqueles “problemões” passavam a pesar o mesmo que nada.

O semblante bruto do meu avô logo se dissipava à primeira nota e só isso já valia o “ingresso” do show. Seus amigos também se movimentavam de uma maneira interessante enquanto tocavam. Sempre gostei dos velhos e seus maneirismos...
Meu avô, embora não dissesse palavra, conversava comigo por meio do seu instrumento reluzente que produzia sons tão nostálgicos, por assim dizer.
Foi ali no coreto, nas noites de terça, que nos conhecemos. Ali que nos entendíamos. Ele tocava e eu podia sentir tudo. Um momento puro de glória, em tempos tão adolescentes. Uma euforia no fundo de alguma parte do meu corpo, entre o coração e o estômago. Eu e ele não faltávamos a um concerto na praça. Lembro do meu avô tocando, e não falando.

Ao terminar a apresentação, o velho agarrou as suas coisas e saiu com pressa, como se tivesse acabado de cumprir um favor que devia a alguém. Abanou a mão rapidamente para mim. Eu abanei de volta e o vi deixar a praça. Tinha as pernas tortas como as do Garrincha e depois que sofreu um infarto, andava com ainda mais confusão. Fiquei pensando se ele pensava em mim. Eu sabia que sim - pelo menos enquanto tocava -, mas usava essa carapuça estranha...

Anos depois, quando me mudei para Portugal, ele se despediu tão somente com um aperto de mãos, virando as costas num passo bem apertado. Aquilo me deixou atordoado, então eu o segui, pensando bem na lição que eu ia lhe dar. Antes de chegar no portão, ouvi, repentinamente, um grito de choro que parecia estar preso na sua goela. Fiquei ainda mais atordoado e nunca mais pude esquecer da cena forte. Deixei de segui-lo e não disse nada.

Na verdade, não disse nada nunca mais, porque agora o velho já morreu. Fico pensando se ele diria alguma coisa para mim antes do último suspiro. O sax já ninguém sabe onde foi parar. Deve ter uns 15 anos que eu vi o último concerto no coreto. Já já eu morro. Logo não há mais a praça, nem o coreto. Os bêbados nos bancos serão renovados. Tudo tão efêmero e passageiro nessa existência, como se nada valesse nada e tudo durasse muito pouco. No entanto, aqueles concertos do meu avô, aqueles sons que ele emitia com o seu instrumento me parecem ter alguma coisa de realidade, de eternidade, não sei explicar muito bem. Vira e mexe, penso se estes momentos não são presente, passado ou futuro em alguma dimensão por aí que eu ainda não compreendo...

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Andrei Baccar Serotini

Meio libanês, meio italiano: legítimo brasileiro. O mais acertado é dizer que sou músico, porque isso é o que mais fiz da vida até agora. Mas não foi só: sou formado em Direito e Comunicação e, atualmente, faço pós graduação em filosofia.
Sempre gostei de pensar nos mistérios da vida, de me purificar pela arte, de escrever como um processo de autoconhecimento e de conversar por horas com pessoas que não têm muito o que fazer e nem para onde ir, como minha avó Suad.

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