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Vampiro

Paris, 1888. Chove intensamente sobre o meu corpo enquanto caminho na rua. As minhas roupas tornam-se pesadas, porém isso não me causa incómodo algum. A vida que acabei de ceifar desvaneceu-se como areia entre os meus dedos. O sabor do sangue com que saciei há pouco a minha sede relembrou-me o sal das lágrimas na tua boca quando nos beijamos pela última vez.

Vagueio pelas ruas mal iluminadas e quase vazias ao anoitecer. Sou um ser errante. Um velho eremita que só sai do seu castelo para caçar. Vejo-te diante de mim. Estendes-me a mão para que dancemos à chuva, mas não te consigo alcançar. Viver para mim é uma maldição. Sinto-te nos breves momentos em que possuo os corpos de outras mulheres. Perco-me e volto a encontrar-me no desejo desse puro, porém breve êxtase que é o sexo, uma das poucas coisas em que um ser como eu ainda consegue sentir prazer.

Observo o despontar de um novo século, uma nova era que em breve se iniciará. Eu é que sou o monstro, mas os homens que observo perdem-se em guerras que só poderão culminar no futuro em algo muito grave. Há séculos que enchem templos, porém não honram a moral apregoada em nome do deus ao qual rezam todos os dias, se é que ainda têm fé suficiente para o fazer! Supostamente são todos filhos do mesmo deus, um deus sempre inconstante que parece ter-se ausentado do mundo que ele próprio criou. Por tédio, quem sabe… Fé e loucura andam de mãos dadas neste tempo pelas grandes cidades por onde tenho passado, um pouco por todo o mundo, cruzando oceanos.

Às vezes sento-me numa colina perto da minha casa e observo um gigante de ferro que se ergue aos poucos. Chamar-lhe-ão talvez Torre Eiffel, nome do seu construtor. Vejo-a como uma nova Torre de Babel. Só que desta vez não será necessário que um deus castigador erga a sua mão e puna os homens fazendo-os expressar-se em diferentes línguas. Há tantas pessoas que falam a mesma língua, porém não se entendem.

Não se entendem porque não sabem o que é amar. Até um monstro como eu é capaz de amar. Amo-te no desespero de saber que jamais te voltarei a ver. A eternidade para mim é um castigo. Imagino como seria se te pudesse ter de volta. De quanto gozo me daria percorrerei o teu corpo com os meus dedos, buscando prazer e escutar o som da tua voz, esse canto de sereia! Quero-te com uma força maior do que o vento tem quando cavalga as ondas.

Inunda-me um suor frio. A minha sede voltou. Não consigo evitar o que vai acontecer a seguir. Percorro novamente as ruas que conheço tão bem como a palma da minha mão. Busco uma presa fácil. Encontro-a. Tapo-lhe a boca e sussurro-lhe uma prece especial ao ouvido. Os meus dentes rasgam a pele firme do seu pescoço. Sugo o sangue dela até o coração deixar de bater. Que vida, que tipo de existência será esta, a que me move todos os dias? Se é que se pode chamar vida a isto…

Pouso o corpo dela no chão e aconchego-o com um velho cobertor. Regressa em força a chuva e deixo que me lave por completo. Que me purifique e me absolva do crime hediondo que acabei de cometer. Até quando irei permanecer neste corpo oco sem alma que tanta sede de sangue tem?

Caminho só no meu regresso a casa. Tenho um longo caminho a percorrer até lá chegar. Um novo dia há-de nascer e no final desse dia regressarei aos labirintos destas estas ruas. Conheço-as a todas como a palma da minha mão. Agora retorno ao meu castelo improvisado numa velha casa sozinha no meio do campo, longe de olhares curiosos ou assustados de vizinhos incómodos.

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Ana Isabel Fernandes

Começou a dar os seus primeiros passos na escrita online há dezasseis anos, enquanto estudante universitária, em vários blogues focados no cinema, literatura e artigos de opinião. Neste ano de 2020, o mais desafiante da sua vida, decidiu dedicar mais tempo à sua velha paixão pela escrita, numa altura em que passaram doze anos desde que concluiu o Curso de Ciências da Comunicação, variante de Comunicação Social, pela Universidade do Algarve. Por isso «O Eco dos Pássaros» é a melhor oportunidade de mostrar o seu talento e se lançar na carreira da escrita.

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