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Poemas para Virar a Cabeça

O COLCHÃO AZUL

Dois homens estavam parados junto
de um colchão de dormir, de cor
azul, na berma da estrada. No movimento
rápido do carro, o colchão pareceu-me macio e espaçoso,
como o campo que se desenhava por detrás.
Provavelmente cansados de o carregar, mudaram-no
da posição vertical, para a horizontalidade
da estrada.
Olhando o espelho retrovisor do carro, vi-os
deitarem-se sobre ele e descansar
daquele carrego estranho.

VIEIRA

Estava um homem,
de negro chapéu e bordão,
lembrando o sabor das uvas de setembro.
Descansava o seu violino na velha caixa de casquinha,
e o seu harmónio à sombra das parreiras,
no perímetro da casa.
Ainda dançou na velha eira das Valinhas,
agora amarelada das palhas do verão,
lembrando as velhas rodas do princípio do mundo.
Depois, afagou os figos maduros,
na velha figueira de olho de passarinho,
falando dos figos enfarinhados de maio.
Na verdade, ele era um velho, muito antigo,
como velho está a ficar o nosso mundo.

O ASTRÓLOGO

Lá estava o papel convidando
às curas de males e doenças.
Descansava, há alguns dias, no lado direito do pára-brisas.
Nem a rispidez das escovas,
nem os esguichos químicos,
o fizeram desistir do seu mundo.
Era um mundo antigo de ritual, febre e dança.
Olhei-o pela última vez e retirei
as suas raízes terrenas.
Admirei, depois, a persistência do astrólogo.

LAGO DE LAMA

Lago de lama, e os pés
de barro saídos do chão triste
de uma folha putrefacta.
O silêncio branco da esteva
e o mar triste e ventoso, da tarde sem dia.
Para que os olhos periclitantes
saibam o texto do amor, de cor.

VOCÁBULO REDONDO

(a propósito de “Redondo Vocábulo” de José Afonso)

Era um silêncio triste, que pairava sobre
os meus ombros, nus.
Era uma ostra que rolava na areia da praia,
gelada.
Era uma nuvem negra, que voava
sobre a minha terra,
sobre o meu telhado.
E de repente, uma gota caiu
na minha cabeça, atenta,
no fundo do mar.

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Helder F. Raimundo

Nasceu em Portimão em 1956 e vive em Loulé, no Algarve. É mestre em Educação de Adultos e tem curso de formação avançada de doutoramento em Formação de Adultos. Investiga e publica nas áreas da educação, das culturas, da etnografia e da etnomusicologia. É autor do livro sobre a história do Grupo Folclórico da Casa do Povo de Alte. Coordenou a edição do catálogo da Tradição Musical de Loulé.
Publicou microcontos nas revistas «minicontos», «minguante», «Letrário» e «Bestiário» e poesia na revista «Máquina do mundo»; dois poemas seus constam na Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, "Da Poesia IV". Foi colunista do jornal "A Voz de Loulé" e cronista pontual do jornal "barlavento". Coordenou o suplemento "a cultura" em "A Voz de Loulé" e o jornal virtual "a cultura é para se comer".

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