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A Maldita Nota de Cinquenta Euros

Não pensem que caminho sempre de cabeça baixa, esquadrinhando o solo; normalmente caminho descontraído, olhando para a linha do horizonte, sem deixar no entanto de ver onde piso; sou sonhador e realista, amo os livros e a solidão, mas naquele dia, junto à mata do liceu, onde por vezes imagino caminhar na floresta, o meu olhar prendeu-se num pequeno quadrado de papel dobrado, em tons de laranja, caído no passeio, junto ao muro de uma vivenda. Percebi logo que era uma nota de cinquenta euros, tinha a certeza, e passei por ela sem abrandar o passo, mas pouco depois parei e voltei para trás. Não estava ninguém à vista, abaixei-me e apanhei a nota, porque se tratava efectivamente de uma nota, uma verdadeira nota de cinquenta euros. Desdobrei-a e voltei a dobrá-la. Olhei de novo à volta, não se via ninguém.

Podia voltar a colocá-la onde a encontrara e ponderei durante algum tempo se não seria o melhor a fazer. O dinheiro só traz problemas, toda a minha experiência de vida, e não é pouca, o confirma. Felizmente tenho dinheiro que chegue para satisfazer as minhas necessidades, que não são muitas, é verdade, mas são no entanto constantes e exigentes. Não precisava daqueles cinquenta euros e, fosse como fosse, não eram meus. Estive mesmo quase a deitar a nota fora, a minha mão começou a abrir-se, pronta a libertá-la, mas nesse momento assaltou-me uma pequena ideia, pequena mas imperiosa: Quem a teria perdido? E far-lhe-ia falta? Ninguém à vista, confirmei de novo.

Coloquei a nota no bolso do casaco e fiquei por ali a pensar o que devia fazer. Talvez o melhor fosse esperar ali mesmo, quem a perdeu poderia tentar encontrá-la, fazendo o seu percurso em sentido contrário. Bastava que eu esperasse e se visse alguém a olhar para o chão, a parar e a retomar o seu caminho, de certeza que seria quem perdeu a nota. Esperei cerca de duas horas, mas ninguém por ali passou com essas características. Ainda estive para abordar um velho que se arrastava penosamente, a cabeça tombada sobre o peito, mas ia tão metido consigo mesmo que era improvavel que tivesse perdido o que quer que fosse a não ser a juventude e a saúde. O que podia fazer? Talvez bater a uma daquelas portas e perguntar se tinham perdido a nota ou se alguém tinha perguntado por ela.
​Era uma acção possível e a única de que me lembrei na altura. Comecei pela vivenda a que pertencia o muro. Toquei várias vezes a campainha junto à porta do pequeno jardim em frente da casa mas ninguém me atendeu. Desci então a rua e toquei à campainha da casa ao lado. Ainda desta vez ninguém me atendeu. Foi então que reparei numa mulher à janela do primeiro andar da casa em que acabara de tocar. Olhava para mim com nítida desconfiança.
“O que quer? Não preciso de nada. Deixe de me incomodar.”
Estive quase para lhe voltar as costas, mas queria encontrar o dono da nota e podia muito bem ser ela.
“Perdeu alguma coisa?”
Pareceu surpreendida e ainda mais desconfiada.
“Se perdi alguma coisa, o que quer dizer com isso?”
Enchi-me de paciência e respondi-lhe com uma pergunta, como me acontece muitas vezes.
“Deu por falta de alguma coisa?”
“É maluco ou faz-se?”, respondeu ela usando a mesma técnica, e recolheu-se, fechando a janela com energia.
Ignorei o contratempo e continuei à espera. Devia ser Domingo, pois a rua estava deserta e era rara a pessoa que por ali passava. Não era propriamente uma artéria muito movimentada mas assim também era demais. Comecei a pensar se a pessoa que perdera a nota já teria dado por isso. Na minha opinião, se levava a nota assim solta, o que era de concluir por estar tão bem dobrada, o propósito deveria ser usá-la o mais depressa possível, pois caso contrário estaria guardada na carteira, bem arrumada, direitinha. E quem traz uma nota dobrada, solta sem dúvida, num bolso qualquer? É a melhor forma de a perder, como é óbvio. Pareceu-me coisa de homem e muito jovem, sem dúvida. Não que cinquenta euros seja muito, mas também não é pouco, e quem tiver recebido cinco euros de troco, talvez seja tentando a guardá-los num qualquer bolso, se não tiver a carteira à mão, mas porque guardaria uma nota de cinquenta euros à solta? Era de manhã, antes do almoço, e quem a perdera devia tê-lo feito pouco tempo antes de eu a encontar. Talvez ainda não tivesse dado por isso, o melhor era eu esperar mais um pouco. Esperei.
Podem pensar que podia ter desistido naquele momento, a maior parte das pessoas já o teria feito, mas é porque não me conhecem; posso até ser teimoso mas a maior parte do tempo sou apenas centrado e persistente. Estava determinado a fazer tudo o que me fosse possível para devolver a nota ao seu proprietário, e acreditem que quando estou determinado não desisto facilmente. E depois, estou habituado à solidão, é mesmo um dos meus amores, estou certo que já o disse. A solidão e os livros. Não tenho muitos livros, apenas aqueles a que volto com frequência e que neste momemto pouco ultrapassam a centena, a maior parte romances e alguns poucos livros de filosofia e algumas biografias. Já tive muitos livros, milhares, mas entristecia-me muito vê-los fechados sobre si próprios, sem ninguém que os lesse, pois eu obviamente que não tinha tempo para isso, nem queria na verdade voltar a ler a maior parte deles. Assim vi-me livre da maior parte e guardei apenas aqueles a que estava certo que gostaria de voltar. Foi a decisão certa, ganhei espaço, ganhei alento e há anos que não compro nem deito um livro fora. Esse é um dos motivos porque não preciso de muito dinheiro. As minhas despesas são baixas e as minhas receitas constantes. Lembrei-me da nota e retirei-a do bolso. Desdobrei-a, olhei-a atentamente, e foi nesse momento que reparei numa mulher nova, e atraente, diga-se, que atravessava a rua e olhava para mim, pareceu-me, ou talvez fosse para a nota. Acenei-lhe com a nota e perguntei-lhe se era sua.
“Minha, o que quer dizer com isso?”
Estive quase a responder porque me fazia essa pergunta, seguindo o meu hábito de responder a uma pergunta com outra, mas desisti e fiquei a olhar para ela. Era mesmo atraente, mas de um modo grosseiro, como uma fruta já demasiado madura.
“Está a perguntar-me se quero essa nota?”
Disse-me aquilo e juro que me piscou o olho.
“Estava a perguntar se era sua, achei esta nota no chão ainda há pouco, e como me pareceu que estava a olhar para ela.”
“Está gozar comigo, velhinho, olhe que sou mulher para lhe dar um estalo.”
Recuei, admirado e estive quase tentado a entregar-lhe a nota e acabar com aquele disparate, mas a mulher tinha-me voltado as costas e afastava-se com passadas determinadas que ecoavam como pancadas.
Era a segunda mulher que me voltava as costas naquele dia, o que me recordou a pouca sorte que sempre tive com as mulheres, que alguns referiam como o motivo directo da minha actual solidão, e mesmo quando eu lhes respondia que amo a solidão e a procuro, riam-se e respondiam-me que só se ama a solidão quando não se pode amar as mulheres. A verdade é que nunca estive só, os livros sempre me fizeram companhia e prefiro-os às pessoas, pelo menos àquelas que conheci ao longo da vida, não que fossem todas más, mas é relativamente mais fácil encontrar livros bons e fiéis. Por ironia do destino os meus romances preferidos têm nome de mulher, é o que costumo dizer a mim mesmo nas minhas horas de solidão.
Maldita nota de cinquenta euros, quase gritei, ainda que, na verdade, me estivesse nas tintas para a nota, só ainda não a deitara fora porque me decidira a fazer o possível para a devolver ao seu proprietário.
Se não fosse o meu amor aos livros, sobretudo aos romances, aos grande romances, estou certo que não amaria a solidão, mas os livros pedem, exigem, solidão, pelo menos é o que eu penso, e vivi a maior parte da minha vida segundo essa regra. Porque, por contraditório que pareça, quando leio os meus livros nunca me sinto só. Não sei o que se passa dentro de mim quando leio um romance, um grande romance, um romance literário; mas sei que nesses momentos não conheço a solidão, nem mesmo quando a personagem principal sente uma enorme solidão e eu a partilho do fundo do meu coração complacente.
Maldita nota de cinquenta euros, quase gritei, e apanhei-a do chão à minha frente, onde a tinha deixado cair, embevecido que estava nos meus pensamentos. Apanhei-a sem pensar, de modo automático, mas logo me ocorreu que teria sido uma boa ocasião para me ir embora, deixando-a para trás. Mas o momento passara e a nota continuava na minha mão. Olhei-a por momentos e guardei-a de novo no bolso do casaco. Apetecia-me um café.
Na minha solidão habituei-me a falar comigo mesmo, muitas vezes até em voz alta, e não me arrependo de o fazer. Existe sempre um outro em nós e é com ele que falo nessas ocasiões. Um outro ou vários outros, vários eus na verdade, ou várias vozes, se quiser ser exacto. De certa forma falo com os livros que leio, com os seus autores, mas não é a mesma coisa. Falar comigo mesmo poderia aumentar a minha solidão, porém eu penso que é exactamente o contrário.
Atravessei a rua e passei para o outro lado. Às vezes bebo café na bomba de gasolina, o café é bom e barato, tem até uma mesa onde me posso sentar. Tem até uma cabine de multibanco, é verdade, teria sido um bom local para levantar uma nota de cinquenta euros e colocá-la dobrada no bolso, porque a iria gastar em breve, talvez no supermercado aqui perto. A porta abriu e entrei, dirigi-me à máquina de café, tirei um e sentei-me na mesa.
“Será que a nota veio daqui? É bem possível.”
“Não te parece uma boa ideia investigar se alguém perguntou por uma nota perdida?”
“Tens razão, é uma possibilidade!”
Bebi o café, dirigi-me ao balcão e perguntei à empregada se alguém se tinha queixado hoje de perder alguma coisa. A rapariga loura perguntou-me se eu tinha achado alguma coisa, respondendo-me assim com uma pergunta, o que me aborreceu um pouco. Ripostei afirmando que talvez tivesse achado, e fiquei à espera de uma resposta. Ela olhou para mim e quase esperei que não me respondesse, mas sempre me foi dizendo que ninguém lhe tinha perguntado nada do género, pelo menos naquele dia, que noutros já tinha acontecido, objectos vários e até dinheiro, muitas vezes supostamente deixado na máquina do multibanco, mas se quisesse deixar ali o que encontrara ela podia guardar, talvez alguém mais tarde a reclamasse.
“Não é má ideia, deixas aqui a nota e o problema passa a ser dela.”
“Mas como sei que não vai ficar com o dinheiro’”
“Não te queres livrar da nota? Esta solução é melhor do que deitá-la fora.”
“Talvez tenhas razão, mas acho que vou ficar com ela mais um pouco.”
Agradeci, voltei as costas e saí sem mais explicações, voltando ao ponto onde encontrara a nota.
“Estás a ser parvo, perdeste uma boa oportunidade de te veres livre da nota.”
“Quem és tu para me dizeres que eu sou parvo?”
“Não disse que era parvo, disse que estavas a ser parvo, existe uma grande diferença.”
Tirei a nota do bolso e voltei a olhá-la; era uma nota de cinquenta euros como outra qualquer, nada a distinguia. Eram quase horas de almoçar e não ia ficar ali, por mais determinado que me sentisse. Não que eu coma muito, é exactamente o contrário, mas o almoço é a minha refeição principal. Devia era gastar a nota num almoço, num bom almoço, com um bom vinho, que eu como pouco mas gosto de comer bem. Todavia eu estava determinado e fui ficando por ali, a pensar nos meus amados livros. Dei por mim a recordar excertos de um ou outro livro, o que me é comum devido à leitura atenta que faços desses livros a que volto com regularidade. Avanço palavra a palavra, frase a frase, parágrafo a parágrafo, voltando atrás, recomeçando, lendo as entrelinhas.
Um cantoneiro aproximava-se lentamente do local. Era uma mulher loura, ainda nova, com o cabelo encaracolado preso num rabo-de-cavalo e com o habitual colete refletor amarelo limão, empurrando o carro do lixo. Dirigi-me a ela e saudei-a. Olhou-me e disse-me bom dia. Perguntei-lhe se era costume encontrar dinheiro. Continuou a olhar-me e disse-me que seria de esperar que encontrasse mais coisas perdidas mas na verdade isso raramente lhe acontecera. Encontrara uma vez um par de luvas ainda em bom estado e uma carteira pequena de homem sem nada lá dentro, e foi tudo. Tinha parado e olhava ainda para mim. Disse-lhe que tinha encontrado uma nota de cinquenta euros e ela olhou-me com a sobrancelha direita elevada, o que deveria expressar surpresa ou desconfiança. Mostrei-lhe a nota e ela agarrou-a e ficou a virar e a revirar a nota, antes de a devolver.
“O que faria se a tivesse encontrado”, pergunteil-he e ela não respondeu de imediato.
“Acho que teria de comunicar no serviço e eles decidiriam”, disse finalmente, sem muita convicção.
Disse-lhe que não sabia o que fazer, que não queria ficar com a nota mas era a única certeza que tinha. A sobrancelha direita dela voltou a elevar-se e ficou à espera que eu continuasse, mas eu não tinha mais nada a dizer.
“Porque não vai à polícia?”, sugeriu após um longo silêncio, e começou a afastar-se. Deixei-a ir sem lhe dizer obrigado, ocupado a pensar nessa possibilidade.
“Queres ir à polícia? Olha que ainda te prendem!”
“Que disparate, porque me haveriam de prender.”
“Tens pinta de marginal e os polícias adoram marginais. Gostam de os arreliar.”
“Que disparate, nem sei porque te dou atenção.”
A esquadra da polícia ficava a menos de dez minutos a pé e talvez não fosse uma má ideia. Evitei pensar sobre o assunto e dirigi-me à polícia onde me encaminharam para a secção de perdidos e achados, onde uma mulher polícia me perguntou sem demora o que é que eu tinha perdido. Respondi-lhe que de certeza que tinha perdido muita coisa na vida mas desta vez não era o caso. A mulher polícia sorriu, mas não era um sorriso agradável e apeteceu-me arranjar uma desculpa qualquer e ir-me embora sem demora. A mulher polícia sorriu de novo e eu expliquei-lhe que tinha encontrado uma nota de cinquenta euros, ao que ela respondeu repetindo “uma nota de cinquenta euros” em jeito de pergunta.
“E vem entregar a nota à polícia?”, perguntou ela. Expliquei-lhe que sim, não queria a nota e gostava que fosse entregue ao seu dono. Desta vez ela riu e eu estremeci, o riso era ainda mais desagradável do que o sorriso.
“E como é que iremos encontrar o dono? E como é que vamos saber quem é o dono? Qualquer pode vir aqui dizer que perdeu uma nota de cinquenta. Seria muito melhor deixá-la onde estava, se não a quer. Talvez o dono dê por falta dela e volte ao local onde a perdeu.”
Não respondi, mas até que concordava com ela. No entanto estava ali e o melhor era levar a entrega da nota para a frente.
Ela riu de novo e eu estremeci de novo. Os risos em geral enervam-me e aquele riso era particularmente desagradável. Fiquei à espera que dissesse mais alguma coisa, mas ela parecia pensativa. Tossiu, aclarou a voz e disse-me que precisava sair durante alguns instantes e não se admiraria se eu não estivesse ali quando ela voltasse. Disse isto e saiu sem mais delongas.
Ainda fiquei algum tempo à espera até me convencer que ela não ia voltar. Saí da esquadra e voltei para o lugar onde encontrara a nota.
“Deixa-a aí, já fizeste o que podias fazer. Vai mas é almoçar, que já estás com o estômago às voltas.”
“Mas ainda tenho a nota e não a quero.”
“Estás a dar-me razão, deita-a fora.”
Toquei a nota no meu bolso e tentei empurrá-la para fora, como que por acaso, e senti que a nota escorregava para fora do bolso até saiu de vez. Não olhei para o chão e olhei para a frente, dando a mim mesmo ordem para avançar. O meu pé direito avançou e o esquerdo seguiu-o sem esforço. O que vai ser o meu almoço, disse a mim mesmo, e foi nesse exacto momento que ouvi muito perto de mim uma voz que gritava.
“Espere, espere, deixou cair qualquer coisa.”
Continuei a andar sem olhar para trás, depressa, cada vez mais depressa, e a voz atrás de mim gritou ainda mais alto.
“Espere, espere, deixou cair qualquer coisa.”
            Virei a esquina e quase corri. “Maldita nota de cinquenta euros!”, ainda exclamei, antes de a esquecer por completo.
            Mas uma mão pousava no meu ombro e a mesma voz fazia-se ouvir.
            “Espere, desculpe, deixou cair isto.”
            Voltei-me e a primeira coisa que vi foi a nota de cinquenta euros, dobrada, estendida na minha direcção.
            “Desculpe, deixou cair isto.”, repetiu a voz.
            Olhei o jovem de fato de treino preto e sorri. Agarrei a nota, agradeci-lhe muito e julgo que até sorri. Ele olhou-me com alguma estranheza e parecia estar à espera de alguma coisa.
            “Está bem?”, disse com um ar preocupado.
            Garanti-lhe que sim, tirei a carteira para fora, retirei uma nota de dez euros e ofereci-lha, afirmando que ele merecia uma recompensa. O jovem hesitou, eu insisti, ele que bebesse um café, comesse uma sandes, e finalmente aceitou e agradeceu. Virei-lhe as costas e continuei a andar.
            “Vais-te embora? Já desististe? És um fraco! Pensei que vivias mais de acordo com as tuas convicções, mas não és diferente dos outros.”
            Parei e fiquei a pensar. A nota de cinquenta euros não só me tinha sido devolvida como eu tinha pago por ela, por assim dizer, quando recompensei o rapaz com dez euros. As circunstâncias tinham mudado e era não só possível mas também necessário que a situação fosse reavaliada.
            “Está a enganar-te, como é teu costume, tu e os teus livros e a tua solidão. És uma fraude.”
            A nota era a mesma, mas tinha sido perdida e achada e de novo perdida e de novo achada. Tinha-a agora na minha posse a um título diferente do inicial, pelo menos poderia pensar assim. Tinha-a encontrado, tinha-me livrado dela e tinha-me agora sido dada. Mas por mais voltas que desse a verdade é que aquela nota não era minha e não podia ficar com ela. Voltei para trás e retomei o meu posto no mesmo lugar onde tinha encontrado a nota.
            A mesma mulher de antes olhava-me da mesma janela do primeiro andar da casa um pouco mais à frente. Olhei-a fixamente e ela voltou para dentro.
            Encostei-me ao muro. Estava um vento frio e desagradável.
            Os dias eram pequenos e a noite chegava muito cedo. Decidi que ficaria ali até ao fim do dia. Estava com fome mas isso não importava. Ia ficar ali até cair a noite e depois ia-me embora, com ou sem dinheiro. E que não me falassem de fraqueza, a mim, que vivo de acordo com as minhas convicções, sem cedências, por muito que me custe.
            “A tua suposta força é toda feita de fraqueza, essa é que é a verdade. Temes a vida, por isso te refugias na leitura e na solidão.”
            Olhei para a janela e a mulher lá estava de novo, fuzilando-me com o olhar. Ignorei-a, ignorei tudo, respirei fundo, aqueci as mãos e olhei para o chão. Aos meus pés estava uma nota de cinquenta euros. Sobressaltei-me. Procurei a nota nas algibeiras e não a encontrei em lado nenhum. Não sei como tinha-a deixado cair, só podia ser isso, ou então alguma coisa muito estranha estava a acontecer. Lembrei-me de um conto de um dos meus autores favoritos e sorri. A nota estava aos meus pés. Olhei-a. Pisei-a com o pé direito e deixei-a de ver. Sorri, olhei em volta, decidi que estava na hora de ir embora. E foi nesse momento que o polícia apareceu.
            “Boa tarde. Está tudo bem?”
            “Sim, estou à espera de um amigo, mas parece atrasado, talvez se tenha esquecido.”
            Não sei porque menti. O polícia olhou para mim como se estivesse a tirar-me as medidas, voltou a dizer-me boa tarde e continuou a andar sem olhar para trás.
            Ainda estava a pisar a nota e pareceu-me a melhor altura para me ir embora. Ainda não era de noite mas já tinha feito o que podia e senti que não era obrigado a mais.
            “Dá-me a tua carteira”, susurrou o homem à minha frente, magro, barba crescida e um gorro preto enfiado na cabeça.
            Olhei-o mais admirado do que assustado. O homem repetiu a frase com a mesma voz sussurrada. Levei a mão ao bolso, retirei a carteira e dei-lha. Aceitou-a com a mão livre, meteu a navalha ao bolso e foi-se embora olhando para trás apenas uma vez.
            Dei dois passos em frente, na mesma direcção do assaltante, e fiquei ali parado por momentos. Voltei-me, olhei para o chão, decidido a apanhar a nota e levá-la comigo. Olhei para o chão à minha frente, olhei para o chão à minha volta, a nota não estava à vista em lado nenhum. Estava vento. Fui até à berma e atravessei pensativo a estrada. Não cheguei a ver o carro que fez a curva com velocidade excessiva e que me ceifou. Aconteceu tudo tão depressa. Fui projectado vários metros e caí indefeso de barriga para baixo. Quando removeram o meu corpo para o transportar encontraram uma nota de cinquenta euros que puseram dentro do bolso do casaco.
            Quando sai do hospital, meses depois, nada mais tinha do que essa nota de cinquenta euros. Fui até ao meu restaurante favorito e pedi o menu de degustação. O preço do menu, não incluindo bebidas era de trinta e oito euros. Mostrei o dinheiro e disse que era tudo o que tinha. Disseram-me que não havia problema e perguntaram-me se queria vinho branco ou tinto.
            Deixei a escolha ao critério do chefe, gosto de ser surpreendido.
Ainda amo os livros e a solidão, nada mudou.

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Luís Ene

Luís Nogueira, que assina o que escreve como Luís Ene, tinha 16 anos em 25 de Abril de 1974 e reside actualmente em Faro, onde passou grande parte da sua infância e a adolescência. Em 2002, foi vencedor da 1ª edição do concurso Novos Talentos com o romance A Justa Medida, publicado pela Porto Editora. No mesmo ano criou o blog Mil e Uma Pequenas Histórias, fazendo em simultâneo a sua entrada no mundo dos blogs e na arte da micro-narrativa. Desde então manteve vários blogs e publicou três livros: Blogs (em colaboração com Paulo Querido), Mil e uma pequenas histórias (Leiturascomnet, 2005) e Muchas vezes me sucede olvidar quien soy ( colecção Palavra Ibérica, 2006), Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido/ Luís Ene. - 1ª ed. - Póvoa de Santa Iria : Lua de Marfim, 2016;  Guru de algibeira / Luís Ene. - 1ª ed. - Faro : Sílabas & Desafios, cop. 2017.  Está representado na Antologia de Poesia Portuguesa Actual - Poema Poema (Aullido. Huelva, 2006), na antologia Contos de Algibeira (Porto Alegre, Casa Verde, 2007) e na Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa (Lisboa, êxodus, 2008). Foi fundador e co-editor da Minguante, revista de micro-narrativas on line. Manteve durante dois anos um programa semanal dedicado à literatura na Rádio Universitária do Algarve. Faz parte do projecto musical SomComTom e Língua no ouvido.
Esteve na origem dos grupos literários Sulscrito e Texto-al. Mantém actualmente o blog Ene Coisas (em http://luis-ene.blogspot.com).
Detesta escrever notas auto-biográficas.

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