Eu Vi o Paul McCartney do Meu Lado
Eu vi o Paul McCartney do meu lado. Isso pode parecer nada, mas talvez possa ter sido a experiência mais sublime que hei de viver. A tarefa de explicar o porquê é que é espinhosa e exigente: exprimir o que, para mim, é quase transcendente.
É tarefa custosa confessar o fanatismo. Toda paixão alheia me parece completamente irrazoável. Ainda assim, passo a alegar minhas razões de defesa, provas de que não poderia ser de outra maneira o que eu sinto em relação aos Beatles: puro êxtase!
Beatles operou uma espécie de escola na minha vida. Sem inspetores, sem advertência, sem horário para chegar e para sair. Sem uniforme, principalmente. Uma escola muito mais tranquila, daquelas de bairro, com uma pequena horta ao fundo e algumas tartaruguinhas. Daquelas que a gente não vê a hora de voltar.
Quem me matriculou nessa escola foi o meu pai. Ele mesmo tinha estudado ali a vida inteira e era um grande entusiasta da banda. Foi ouvindo Beatles que gritamos e cantamos juntos inúmeras vezes, apanhando vento na cara durante longas viagens, e foi por meio das letras de Lennon e McCartney que debatemos as questões mais profundas das nossas existências.
Aos seis anos de idade, o dono de uma banca de jornais burlou as regras da premiação da revista que vendia e me presenteou com um relógio da Editora Abril após eu ter cantado a “música do submarino” para ele junto com o meu pai. Ele parece ter ficado arrebatado com o que eu havia aprendido na escola dos garotos de Liverpool.
Aos dez anos, quando eu mesmo já me engraçava com instrumentos - e por causa dos caras -, meu pai me levava, aos domingos, no bar Entretanto, onde um trio só cantava Beatles uma tarde inteira. Era como um “reforço” aos finais de semana. Aqueles shows me faziam flutuar. “Como é possível terem sido só três a tocar?”. Eu ouvia uma sinfonia! Eu sabia as letras de cabo a rabo. Eu podia fantasiar os Beatles na minha frente.
Em 2010, quando eu fiz dezessete anos, o Paul foi ao Brasil. Não ia para lá desde o ano em que eu nasci, 1993. Meu pai não deixou escapar a oportunidade: abriu a porta do meu quarto sem bater - já gargalhando -, e mostrou dois bilhetes e duas passagens para São Paulo. O ingresso - que guardo enquadrado até hoje - tinha papel reluzente. Luz que, sem exagero, resplandece em mim até hoje.
Ao chegar no Morumbi com boas horas de antecedência, a fila já era imensa. A emoção também: comecei a processar melhor a ideia de que estaria a alguns metros do Paul dali um pouco. "Um Beatle!”. Era mesmo inacreditável! Meu pai tentava segurar a onda visto que ele era o pai da situação, mas pouco conseguia disfarçar seu fanatismo.
Por acaso ou destino, um segurança nos informou que devíamos procurar um grande portão vermelho logo adiante que ali era o final da fila, então encontramos e esperamos… muito ansiosos ao lado do portão. Passado algum tempo, um trio de SUVs pretas descendo a avenida despertou nossa atenção e dos fãs ao nosso lado. Quanto mais se aproximavam, mais o ruído da multidão aumentava. As pessoas começavam a questionar se haveria de ser o Paul ali dentro de algum dos carros.
Contra a minha intuição, o portão se abriu numa fresta e alguns seguranças saíram de dentro do estádio. A euforia tomou conta de todo mundo. Eram fanáticos! Nessa hora, eu e meu pai nos agarramos firmes na grade, afinal nós também éramos. A chance era grande de, atrás de algum daqueles vidros fumê, estar o Paul McCartney.
Os carros começaram a diminuir a velocidade e dar seta no sentido de que iam entrar pelo grande portão vermelho, que estava a poucos metros de nós, um ou dois. Eu fitava meus olhos em todos eles. Eu precisava ver o Paul. "Será que ele é mesmo de verdade?”. Meu pai começou a gritar. O portão vermelho então se abriu e as SUVs começaram a entrar. Os fanáticos estavam em polvorosa. Eu lembro de estar com as pernas bambas - e de alguma forma já sentindo a presença do cara -. Ao atravessar o portão, a porta traseira da segunda SUV se abriu e dali de dentro eu vi sair uma luz brilhante que abanava as mãos e sorria para todos nós: James Paul McCartney! Ah, o olhar do Paul! Seu sorriso! Que belo ser humano. Estive frente a frente com ele por alguns segundos que duram até hoje. Ele estava com 71 anos, mas eu juro por tudo que é mais sagrado: parecia um garoto!
Eu e meu pai gritamos como aquelas garotinhas inglesas de 1964, só não chegamos a desmaiar. Foi quase.
O show foi reconfortante e purificador. Uma lavagem completa da alma. Como se tivéssemos ido a um culto, onde pudemos chegar o mais próximo que é possível de Deus. Foi um marco na minha vida e na minha relação com o meu pai.
Depois do término do show e de boa parte do pessoal ter deixado o estádio, nos abraçamos forte debaixo da garoa de São Paulo. Meu pai sacou o celular do bolso e começou a gravar um vídeo. “Quero que esse momento histórico fique registrado pra sempre”, “te amo, velho”, “mostra isso pros teus filhos”.
Agradecemos a oportunidade daquele momento, a oportunidade da vida. “Que cara foda!”, sussurrou o meu pai, ainda sem acreditar no que tinha acontecido.
Hoje, quase dez anos depois, me tornei músico e metade do meu repertório é Beatles. Eu oro e abençoo toda plateia cantando músicas como “let it be” e “hey jude” e coloco-os pra dançar ao som de “one after 909” e “can´t buy me love”. É mesmo como uma oração, porque eu tenho muita fé no que eles cantavam.
Na cabeça da criança que mora aqui comigo, Beatles é um caminho pro bem, através da música. E eu sempre saio por aí para espalhar as boas novas. Contar essas coisas que meu pai me ensinou. John, Paul, George e Ringo. Acho que vai ser para sempre assim. Mas eu sei, baita coisa de fanático!
Andrei Baccar Serotini
Meio libanês, meio italiano: legítimo brasileiro.
O mais acertado é dizer que sou músico, porque isso é o que mais fiz da vida até agora. Mas não foi só: sou formado em Direito e Comunicação e, atualmente, faço pós graduação em filosofia.
Sempre gostei de pensar nos mistérios da vida, de me purificar pela arte, de escrever como um processo de autoconhecimento e de conversar por horas com pessoas que não têm muito o que fazer e nem para onde ir, como minha avó Suad.