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Quatro Microcontos de Aragens Marítimas ​

A Caixa
Como criminosos que escondem as ignaras provas do crime, trouxemos a caixa de sapatos, imaculada de branco. Tínhamo-la encontrado junto ao convento, num caminho de terra estreito entre moitas marítimas, ali no chão. Como se alguém a deixasse fechada e arrumada, depois de calçar os sapatos mágicos que ela conteria. Eu e o Caló não a compartilharíamos com ninguém, pois o achado era tão estranho quanto desejoso. No caminho até à praia (não fomos para casa, local impróprio para segredos adolescentes) fomos abrindo e fechando a caixa branca, enquanto os comíamos um a um, doces e suculentos bolinhos de amêndoa e fios de ovos frescos. Quem os terá escondido na caixa de sapatos?

​Madame
A professora primária obrigava-nos a vender uns selos de apoio aos ‘caranguejos’. Lá formávamos grupos de dois, para correr de uma ponta a outra a estância balnear dos aristocratas do «Agosto Azul». Nesse dia fiz parelha com o Caló, um campónio que tinha vindo não sei donde e adorava construir casotas de Tarzan em cima de árvores raquíticas. A nós coube-nos o lado poente da avenida. No caminho, armado em esperto, tentei burilar uma estratégia para a minha timidez e de modo a conseguirmos vender mais selos do que as outras equipas. Foi assim que me lembrei de sugerir ao Caló que, depois de batermos às portas, deveríamos tratar as mulheres por "madame" (onde é que eu tinha ouvido isto?). Claro que o Caló – esperto e viajado – retorquiu-me à martelada: Não pá, madame é a criada!

As Moscas
Sim, as moscas andavam por todo o lado, adejando asas e vibrando aragens finas no verão quente; seria setembro, talvez, pois o prenúncio do tempo da escola estava lá com elas. Serviam que nem ginjas para os bicos sequiosos das ferifolhas, pequenos passeriformes que poisavam sempre nos arbustos marinhos das dunas da praia. Nem precisava de tapar a ratoeira. Ela abanava com o vento das asas da mosca presa entre a espada e a parede, ou melhor, espetada no arame do pingalhete à mercê da sombra amarela da ave. Esta, por sua vez, sabia também o seu destino inexorável.

Os Heróis
Não sei se vieram noutros verões. Mas naquele, em setembro, lembro-me bem: chegaram pelo rio, num barco de tábuas húmidas e descoradas pelo tempo e atracaram por ali na areia da margem. Éramos putos e recordo que os achámos estranhos. Seriam marido e mulher, perguntávamo-nos. Percebíamos os dois com idades diferentes como fugidos a uma justiça humana ou divina, não o sabíamos. Estiveram por ali uns tempos; semanas, meses? Um dia, na maré vaza, na sua ausência, entrámos na embarcação à procura de pistas, de uma história para viver e depois contar. Como heróis que éramos nesses tempos. Mais tarde, aceitei que eles seriam mais heróicos do que nós.​

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Helder F. Raimundo

Nasceu em Portimão em 1956 e vive em Loulé, no Algarve. É mestre em Educação de Adultos e tem curso de formação avançada de doutoramento em Formação de Adultos. Investiga e publica nas áreas da educação, das culturas, da etnografia e da etnomusicologia. É autor do livro sobre a história do Grupo Folclórico da Casa do Povo de Alte. Coordenou a edição do catálogo da Tradição Musical de Loulé.
Publicou microcontos nas revistas «minicontos», «minguante», «Letrário» e «Bestiário» e poesia na revista «Máquina do mundo»; dois poemas seus constam na Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, "Da Poesia IV". Foi colunista do jornal "A Voz de Loulé" e cronista pontual do jornal "barlavento". Coordenou o suplemento "a cultura" em "A Voz de Loulé" e o jornal virtual "a cultura é para se comer".

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