A Porta
Tinha um apito na cabeça e uma porta à sua frente. Ou melhor, tinha um apito lá bem dentro da cabeça e uma porta mesmo à sua frente.
Quanto ao apito nada de extraordinário. Há largos anos que acordava todo o santo dia com o apito na cabeça. Nos primeiros anos de apito, ainda pensou que seria efeito directo da vida de boémio que levava. Acordava de uma noitada fortemente regada a álcool com o apito na cabeça. Todos os dias. Assim manteve. Antes o apito do que mudar de vida. Mas os anos passaram e começou ele a mudar de perspectivas, como fazem todos os seres humanos que crescem e que passam a ter uma visão a partir de uma altitude ligeiramente superior, com um outro ângulo que permite entender certos assuntos. Percebeu aí que seria melhor mudar um pouco os hábitos. Largou o álcool, mas o apito não o largou.
Uma vez desabafou com um amigo que o apito lhe parecia com o de uma panela de pressão. “É o resultado dos teus sonhos. Tens sonhos excêntricos que se vão acumulando durante a noite. De manhã tens que soltar a pressão que tens nas ideias”.
O amigo brincava, mas pareceu-lhe plausível. Nunca tinha contado a ninguém, mas sempre teve sonhos que abandonavam por completo todo o conceito de realidade. Como tal nunca os conseguia descrever, não passavam de sentimentos.
Por isso naquela manhã o apito não o surpreendeu, apesar de ser consideravelmente mais forte do que o habitual. Mas a porta sim. Uma porta mesmo à sua frente.
Vivia há 11 anos naquela casa. Conhecia todos os cantos, recantos e desencantos. Sabia perfeitamente que no corredor que o levava todas as manhã do quarto à casa de banho não havia nenhuma porta. Muito menos como aquela porta, na parede que não dava para lado nenhum. Era o limite da casa.
Durante uns instantes fitou a porta. Não lhe tocou. Pensou estar ainda a sonhar. Não. Talvez a delirar. Comera algo estragado ao jantar? Não. Talvez um efeito secundário de alguma coisa desconhecida? Voltou para o quarto, deitou-se, fechou os olhos, aguardou uns minutos, abriu os olhos, saiu da cama, percorreu o corredor e confirmou. Estava uma porta na parede do corredor. Desta vez olhou apenas de soslaio e continuou para a cozinha. Não ia dar parte de fraco.
Tomou o pequeno almoço em absoluto silêncio, para ter a certeza que daria por qualquer movimentação. “Movimentação! Se existe uma porta, será que ela abre? Poderei sair? Poderá alguém entrar? Poderá algo entrar?”. Sentia uma enorme tentação ao perspectivar uma saída daquela casa. Mas tinha um pavor muito superior a que algo entrasse. Que poderia entrar? Olhou para a caneca de café, para o líquido escurecido, para o leve vapor que serpenteava dali para fora, libertando-se, elevando-se de uma forma mais digna do que a mais majestosa das aves consegue fazer. Mas a cor negra lembrou-o de um dos sonhos.
Um sonho que, tal como todos os outros sonhos, ele não recorda em movimento, em forma ou som. Apenas uma cor. Aquela cor. E se esse sonho entrasse por aquela porta? Largou a caneca e regressou ao corredor. Sem tocar na porta, aproximou-se e ficou à escuta. Nada. Por momentos pareceu-lhe ouvir um chilrar de um pássaro, como que vindo do outro lado da porta, mas nada mais. Observou a porta com atenção. Toda de madeira escura, absolutamente lisa, a moldura ligeiramente sobressaída. Maçaneta perfeitamente esférica, da mesma madeira, e um trinco de correr.
Quando o viu, de imediato agiu. Trancou a porta. Sentiu-se seguro, já não entrariam sonhos maus. Ficou olhar para os dedos. Para o polegar e o indicador direitos. Tocaram no trinco. Tocaram na porta. Será que a porta transmite alguma maldição? Ele ficou muito inquieto, parado, olhando fixamente os dedos, desnorteado, assustado. Apressou-se para a casa de banho e lavou as mãos com água e sabão. Com muita água e muito sabão. Muitas vezes. Durante muito tempo.
Voltou à cozinha e sentou-se. Sentia-se estúpido. Claro que o problema não seria ter tocado na porta. O problema era ter uma porta na parede do corredor. Isso levantava várias questões. Como nasce uma porta do nada? Apareceu sozinha ou alguém a colocou lá. Se há uma porta, então o que haverá para lá dela.
Passou toda a manhã a circular pela casa, pelo corredor, procurando respostas, formulando propostas. Nada. Já tinham passado 6 horas desde que a descobrira quando finalmente foi vencido pelo factor que atraiçoa a maioria dos homens e a totalidade dos gatos. A curiosidade. Decidiu enfrentá-la e descobrir o que estaria atrás da porta.
Jogou a mão ao trinco, mas sem efeito. Tentou com mais força. Várias vezes. Inúmeras vezes. “Estranho”. O trinco deslizara suavemente quando o fechou e agora nada. “Talvez tenha truque”. Observou o trinco de perto, ao pormenor. Ao fim de meia hora intercalando observações e tentativas, foi buscar a caixa de ferramentas. Primeiro tentou forçar o movimento do trinco. Depois tentou arrancar o trinco. Isso conseguiu, fazendo saltar a peça em bloco que atravessou o corredor. Rodou a maçaneta e puxou a porta. Nada. Largou e tentou de novo. Nada. “Talvez a porta abra para fora”. Rodou e empurrou. Nada. Tentou uma dezena de vezes em cada sentido e sentou-se a observar a porta.
Não tinha grandes planos para aquele dia. Nem pequenos, aliás. Iria ser a tarefa diária. Com uma chave inglesa e um alicate forçou a maçaneta, talvez estivesse perra e não rodasse o suficiente. Insistiu, forçou, juntou mais dois ferros e outro alicate até que finalmente a maçaneta separou-se da porta e foi descansar no chão do corredor a um palmo do trinco.
Ele irritou-se e foi até à sala. Sentou-se no sofá a ouvir um CD de música para yoga, para ver se conseguia ficar mais calmo. Adormeceu e teve um sonho fúchsia. Nem bom nem mau. Apenas fúchsia. Mas acordou resoluto. Não seria vencido por uma porta recém-nascida.
Tirou da caixa um berbequim eléctrico. Escolheu a maior broca e furou a porta. Quando sentiu a broca atravessar a madeira, parou a máquina, retirou e pousou-a, ao mesmo tempo que fechava os olhos. Tinha que saborear este momento. Prolongar para apurar o sentimento. Haveria de espreitar pelo buraco. Iria ver o sol? Um pássaro a cantar? O mar?...
Viu um tijolo. Colado à porta. Um rude tijolo mudo, imóvel, vermelho. Se ele tentar recordar o que se passou, talvez diga que a cena durou 5 minutos. Na verdade esteve durante 1 hora e 14 minutos desesperado, a espreitar, a sentar-se no chão, a percorrer a casa aos gritos, a repetir o ciclo e a repetir novamente por ordem inversa. Depois foi raivosamente buscar o maço, o escopo, o martelo e outras violências. Aí durou 17 minutos até não restar madeira na parede. Ficou apenas a marca da porta, pois onde esta estava era apenas visível uma parede de tijolo. Um rectângulo de tijolo no meio de uma parede branca.
Estava desfeito. Tudo ficara ainda mais incompreensível. Sentiu-se derrotado. Arrumou as ferramentas e empilhou os restos de madeira a um canto e foi com um pedaço da porta para a mesa da sala. Observou com toda a atenção o fragmento. Não tinha nada de particular, era simplesmente madeira. Durante o resto do dia bem que tentou distrair-se, ocupar a mente com outras tarefas, mas não conseguia. Agora tinha um apito e uma porta dentro da cabeça. Sim, o apito ainda não tinha desaparecido. “Estranho”.
Nessa noite teve um aprazível sonho ocre e um frenético sonho carmim. Quando acordou deixou-se ficar longamente deitado, arrastando o momento e o pensamento. “Terá sido um sonho?”. Olhou para as mãos, ainda tinha marcas das farpas do dia anterior. Não tinha sido um sonho. “Estará ainda na parede a marca da porta?”. “Terá desaparecido da mesma forma misteriosa com que apareceu?”. Levantou-se com o apito ainda mais intenso que na véspera e assomou-se à entrada do corredor, espreitando devagarinho. Estava sim.
Enquanto tomou um duche tomou também a decisão de tratar da parede. Aquele rectângulo de tijolo incomodava-o. Tinha em casa o que era necessário, estuque, ferramentas, tinta, trinchas e tempo. Depois de um par de torradas que lhe recordaram um dos sonhos nocturnos e de uma duplicada caneca de café que lhe recordou um outro sonho (tal como acontecia todas as manhãs, mas apesar disso não deixava de beber café) arregaçou mangas.
Observou a parede e a marca. Hesitou. Iria restaurar e voltar a ter a parede como sempre teve? Momento de epifania. Voltar a ter uma porta na parede. De imediato pareceu-lhe absurdo, mas talvez não o fosse. Aquele corredor que percorria diariamente umas 28 vezes era frio, feio e tristonho. Já tentara pintar a parede de alguma cor que não lhe recordasse nenhum sonho. Tentara pendurar um quadro, um poster, fotografias, postais, um pano. Nada resultara. Na verdade a porta foi o elemento mais interessante que já decorou aquela parede, aquele corredor. E desta vez não haveria mistério na forma como a porta surgiria. Seria simplesmente fruto do seu trabalho.
16 horas atrás estava tresloucadamente a destruir uma porta que não pedira. Agora estava a reconstruir uma porta que destruíra. Avançou cegamente por estar firme na decisão. Se hesitasse, provavelmente questionaria a sua sanidade mental e porventura viria a desistir. Esforçou-se por evitar introspecções. Juntou os pedaços restantes, foi colando, pregando, aparafusando, dando forma ao que já tinha sido. Havia no entanto várias partes que não conseguia reconstruir, partes da porta original tinham sido transformados em porções demasiado pequenas para manusear, ou mesmo em serradura. Arrancou da sala duas prateleiras, deixando os livros envergonhados em cima de uma cadeira sem braços. Usou essa madeira para colmatar as falhas, espalhou cola de madeira, lixou.
Estava quase pronta mas ainda não terminada. Parou, recuou dois passos e apreciou. “Sim, mais um pouco de lixa, rectificar a ombreira, verniz”. Estava satisfeito com o trabalho. Fora realmente uma boa ideia, a porta assentava bem naquele troço de parede. As 28 viagens diárias iriam ter outra cor, de cada vez que por ali passasse e admirasse a obra.
Fez uma pausa para descansar e comer algo. Preparou uma sandes de rúcula e um batido de ovo e salmão. Ia dar a primeira trinca quando ouviu um ruído. “A porta” pensou, mas apercebeu-se de que o ruído viera do lado oposto. Tinha caído um dos livros retirado à força das prateleiras. Apanhou-o.
“Mais vale destruir que conservar. Quanto mais se remenda, pior se fica. Quanto mais se remenda...”
Huxley. Fechou-o e pousou-o novamente na cadeira. Admirável sem dúvida. Também ele desejava há muito um mundo novo, mas bem diferente dos da literatura, e certamente bem diferente do dos seus sonhos. Um mundo fora daquelas paredes, fora daquela casa. Fora daquele cinzento descolorido e descolorado. Cheio de cores e tons variados. Cheio de luminosidades, intensidades e acima de tudo, cheio de sentimentos.
Deu duas dentadas na sandes e pousou-a no prato. Não era essa a fome que ele tinha. Estava ansioso por terminar a tarefa. Voltou para o corredor, agarrou na lixa, mas deixou-a cair ao observar o que estava em frente aos seus olhos. A porta estava terminada. Ou melhor, a porta estava imaculada. Tal como a vira ontem. Não tinha um risco, uma marca. Nada.
Nem se admirou por não ficar demasiado incomodado. Afinal, depois do que acontecera desde que se levantara na manhã anterior, era só mais um episódio.
Olhou para o trinco. A porta estava destrancada. Lembrou-se da cor do café, do sonho que recorrentemente o assustava. Controlou o instinto, o medo. Não trancou a porta, admirou-a. Desejou-a. Experimentou-a.
Rodou a maçaneta e puxou a porta. Espreitou. Não viu tijolos nem cores. Viu muito mais que isso. Viu uma imensidão que se estendia à sua frente. Viu coisas que entendeu e outras que não. Mas ouviu claramente um pássaro a cantar. Avançou e fechou a porta atrás dele.
Carlos Norton
Nasceu em 1975. Vive em Monchique. Seguiu estudos académicos na área das ciências, mas trocou a vida de investigador pela de artista. Começou a escrever um policial aos 7 anos ("Um periquito morto no casarão") mas desistiu ao fim de 2 páginas incompletas. Pouca roupa nas gavetas que estão cheias de papéis escrevinhados.