Raposa, Menina e Moça
Era de noite. O céu estava estrelado e os campos dançantes. A humidade que se entrelaçava nos ramos das árvores guiavam os mais curiosos até ao lugar mais alto da aldeia. Ali todos se encontravam para descodificar mistérios, descobrir novos mundos e também para sonhar. Dizia-se que naquele sítio, tudo e todos se tornavam sábios. Numa noite, a criatura mais pequena da aldeia decidiu visitar esse lugar. Sabia que não era para os mais jovens, mas se ali os sonhos aconteciam, era exactamente ali que pertencia.
Convidou outros pequenos da aldeia, mas todos recusaram. Os mais velhos assustavam todos os curiosos. Ninguém se aproximava daquele local até se tornarem maiores, era o pacto. Mas seguida pela curiosidade, não se intimidou. Apenas conseguia olhar para as estrelas, farejar as flores e dançar. Não demorou muito a chegar. Aliás, nem sabe que caminho traçou. Apenas se lembrava que nesse instante, todos os olhos presentes a dominaram, espaventando-a. Baixou o seu olhar na direção da terra e lentamente se aproximou. Só queria conquistar o seu lugar e estava disposta a tudo. Afinal, era ali que os sonhos e a sabedoria desciam até ao comum dos mortais e não havia porque não participar dessa cerimónia.
As horas passavam e parecia que tinha sido aceite. Pelo menos nenhum dos presentes a tinha expulsado do local. Estava radiante, finalmente participara do grupo dos sábios. Rumores vagueavam pela aldeia dizendo que esta pequena não durava muito, de tão frágil e diferente que era. Havia até quem lhe traçasse um rumo de loucura e perdição, segundo exemplos do passado. Quando alguém decide sair do lugar que lhe é destinado, algo de mau acontece, diziam. Mas ali permanecia, ainda que tímida mas feliz, num êxtase interno difícil de exteriorizar.
Sabia que não se deveria pronunciar. Bem, o seu instinto dizia-lhe que se queria fazer parte do grupo ou pelo menos lá voltar, teria de se controlar. Mas não demorou muito até que um dos sábios apontasse para o céu e dissesse: “veem esta constelação? Esta é a Úrsula menor. A seu lado encontra-se a Úrsula maior. E todos exclamaram: “sim, tão perfeitas!” Nesse momento a pequena estremeceu. Ergueu o olhar para o céu e apavorou-se. “Onde está?”, pensava. “Qual é? Como é possível encontrar uma constelação, supostamente tão fácil de reconhecer por todos se eu apenas continuo a ver as estrelas?” Não se conteve e de voz trémula, sussurrou: “não... a Úrsula não existe.” Foi assustador. “Como te atreves?”, disse um dos elemento do grupo. E replicou: “como podes ser tão insolente e capaz de contestar o que está provado há gerações e gerações? As constelações existem, têm nomes, formam figuras e pertencem aos sábios, não aos loucos.”
Esta foi a primeira vez que a cauda da pequena se escondeu entre as pernas, de tal modo que fê-la perder o equilíbrio. Uma rajada de vento abalou o seu frágil corpo e parte do seu pêlo se esvaiu ao luar. Mas ainda assim, teve coragem para dizer: “perdoem-me se só vejo as estrelas e não vejo as constelações. Se aqui é permitido sonhar, podemos criar novas constelações. Existem tantas combinações e na verdade o céu ainda não está desenhado. Eu vim aqui para...” -“Nada!” Disse de lufada um dos carneiros que se descontrolou e a atacou. “Sai raposa, vai e não voltes mais. Não mereces nem este mundo nem outros. Aqui não há espaço para traidores. Traçaste o teu destino e não mais te libertarás dele.”
A pequena raposa desatou a correr. Chorava, perdida. Foi expulsa da sua aldeia e atirada aos lobos. Ninguém diria que sobreviveria. E assim foi, por longos anos, que a sua história permaneceu. Mas nunca é tarde demais. Depois de tempos sem rumo, descobriu um novo lugar, banhado a ouro celeste e azul de mar. Como algum dia poderia imaginar encontrar uma aldeia onde era permitido sonhar? Chamava-se Raposeira e estava-lhe predestinada. Aqui não nasceu, mas aqui se completou. Nesta povoação de olhos vivos e de coração fugaz, onde os sábios são loucos e as raposas são mais.
Luz Alba
Luzalba é uma artista visual, escritora e investigadora cultural residente na Raposeira, uma aldeia costeira a sul de Portugal. Desde 2010 até ao final de 2017, residiu em Veneza, Itália, onde consagrou a sua carreira artística. Da sua experiência profissional, colaborou com influentes artistas e instituições como Danh Vo, The Danish Foundation, Lee Ufan, Paulo Bruscky para Nara Roesler Gallery, Fondazione Prada e editora Electa|Mondadori, entre outros. Atualmente, Luzalba estabeleceu o seu estúdio e observatório num lugar rodeado pelo mar e por uma natureza única e selvagem, onde prossegue continuamente com a sua investigação artística e literária a respeito dos ritos pagãos e paridades ancestrais.
O seu preeminente projeto intitula-se The Body Constellations (Constelações Corporais). Luzalba usa os sinais, cicatrizes e pontos do corpo para criar um novo conceito: "Os corpos se transformam no nosso céu e as marcas corporais nas nossas estrelas”. Conduzido por um algoritmo que tem por base características pessoais, conectando-as com fragmentos visuais de animais e outros elementos naturais, este método constrói constelações únicas inspiradas nas singularidades de cada um. Inúmeras combinações são criadas através dos nossos corpos, transportando elementos científicos, astronómicos e antropológicos para uma nova visão de arte e reflexão intemporal.