Podes Ser Tudo
podes ser tudo
podes fazer tudo
podes matar deus
- ou o teu pai -
é indiferente
podes fundar uma religião
podes rezar ao rei lagarto
podes beber até cair
podes chorar na sepultura de um desconhecido
somos todos desconhecidos
podes olhar pela janela
e imaginar o calor do sol na pele
de olhos fechados
até arder, arder, arder
podes ser tudo
podes fazer tudo
podes estar em todos os lugares
de todas as maneiras
que bem entenderes
podes rejeitar o cativeiro
e escoicear
escoicear palavras
escoicear sonhos
escoicear música
escoicear raiva
escoicear amor
podes escoicear
escoicear
escoicear
podes fazer tudo
podes ser tudo
podes ter um altar
cheio de recortes estúpidos
e adorar quem tu bem quiseres
podes fazer tudo
podes ser tudo
podes tocar nessa veia
saliente no peito
que só se vê bem à noite
e sentir o sangue a pulsar
tão vivo
na suave pele dos dedos
só porque te apetece
podes fazer tudo
podes ser tudo
podes ser pianista
com a música dos outros
ou podes sonhar a tua música
para os outros tocarem
podes fazer tudo
podes ser tudo
podes rir
podes chorar
podes praguejar
podes não saber o que sentes
porque não sabes
naquele momento
e ganhas fôlego até saberes
e de onde ia sair um grito:
sai uma gargalhada
e de onde ia sair um sorriso:
sai um soluço absurdo
podes fazer tudo
podes ser tudo, tudo, tudo
podes, podes, podes
podes?
Cláudia Tomé Silva
Natural de Faro, licenciada em Jornalismo, comercial numa multinacional, escrevinhadora de poesia. Dizem que a poesia nasceu comigo, que na primária já escrevia e oferecia papéis aos colegas. Não sei. Lembro-me de um dia estar na aula, a escrever, e de sentir o mesmo estalo no cérebro que sinto hoje, ao escrever um poema. Os que guardei datam da adolescência. Ter nascido e crescido numa seita na qual nunca acreditei, nem sobre a qual pude ter real poder de escolha, durante muito tempo, marcou intensamente a minha identidade. Escrever poesia foi uma forma terapêutica de lidar com as emoções. Bárbaras. Hoje casada e mãe de dois meninos gémeos de 9 anos, um deles com espectro do autismo nível 1. A demora no diagnóstico e no acompanhamento adequado deixou-nos, aos quatro, em carne viva. De novo, a poesia foi terapêutica. Já adulta, já mãe e no meio de uma nova crise identitária, voltei a encontrar a escrita. E a poesia voltou a encontrar-me.