Bicho-de-Conta
De cabeça no chão e pernas esticadas como pináculos góticos encostados à parede, apercebo-me de que o mundo já estava ao contrário, antes de eu mesma fazer o pino. Apercebo-me de que se continua a morrer, apesar de viver ser coisa suspensa, nestes dias. E que barbárie essa, a de se suspender a vida. O mundo não pariu deleites para serem confiscados. Por isso, a suspensão da vida não me serve nem me cabe. Fica-me larga. Sou demasiado magra para ela. Ou, pelo contrário, excessivamente sobre-nutrida dela, da vida, para que a sua suspensão me possa servir. É que a suspensão da vida só serve a quem boia nela, na vida; quem se fica pela flutuação, à superfície, onde tem pé. Então, logo a mim, que me embebedo de sonhos e visões em que afundo até à Fossa das Marianas; logo a mim, a quem as ideias são para ir de vento em popa; logo a mim, a quem a gula, a apneia e as insónias dizem que o mundo não é para se dormir; logo a mim tinha de também calhar suspender a vida?
Como se o peito não estivesse já apertado demais, contorço-me, como bicho-de-conta enrolado e ensimesmado. Estes dias têm feito do peito uma esponja e um repelente, que absorve e atrai ainda mais do que o costume; têm feito dele um bombo, e são esses mesmos dias as baquetas que lhe tocam e o estremecem, com a diferença de que a partitura é feita de pautas vazias de som ou cheias de pausas de semibreve, carregadas de um infinito silêncio, que só os pássaros e os nós, que atracam a garganta e armazenam a voz raptada, ouvem.
As quatro paredes a que estou confinada desorientam-me e desregulam-me mais do que se vagabundeasse lá fora. E a culpa, a culpa é toda dos devaneios da mente que me sugam, alucinantes. Da estante, de madeira já quase gasta de tanto limpar para os dias enganar, puxo o meu livro predileto. Bárbara, arranco-lhe a capa e rasgo-lhe as folhas com uma veemência e pujança tais, que sobram apenas nacos de papel semeados pelo chão que os não vai fertilizar.
Há uma certa pontada de grotesco e um arrepio de assombro na forma como acredito que as páginas que rasgo não são mais que as peles minhas que arranco; ou escamas que depeno; ou penas que amanho, nas manhas de cada manhã. Como se fosse na pele que a comichão mental se sente, e não na mente, e arrancá-las, as páginas, ou peles, como quisermos, significasse ver-me livre dessa comichão. Sempre foi mais fácil ignorar o que nos estremece do que fintá-lo e confrontá-lo, não é? Apesar de se suspeitar de que a opção de ignorar é a menos nociva (como uma carícia numa escara em sangue vivo), a verdade é que ignorarmos o que está diante de nós é como vestir uma camisola do avesso. Serve, eventualmente agasalha e protege, mas não é idealmente tão confortável quanto seria se tivesse sido vestida do lado direito.
Ainda assim a visto; ainda assim me dispo; enquanto rasgo as folhas na convicção baça de me serem peles. Até que uma cãibra e uma fadigazita nas mãos que uso para me arrancar me fazem parar. Em alternativa, arranco gaiola-fora, trocando as quatro paredes pelo montado quase-alentejano que me chama, apetrechado de fardos de palha. Se soubesse acreditar em pecados, defenderia ser heresia suspender também estes fardos de palha.
Esta noite, a palha não vai ser forragem para alimentar animal algum, se não o que habita em mim. Vai ser colchão. Talvez a terapia para tornar mais leves os fardos que carregamos seja isso mesmo: transformá-los em colchões de palha onde nos de(le)itamos. Talvez numa altura normal não me ocorresse tal metáfora, e a palha nada fosse para além de palha. São coisas que o cérebro nos dá para nos relembrar que precisa de ser amamentado. Escolho o fardo mais farfalhudo, onde me estico. Cerro os olhos. Os fios de palha cocegam-me a nudez envergonhada dos flancos que as anáduas de renda não escondem.
Agora sim: oxalá fosse mesmo de papel a pele que me faz; é que se assim fosse, talvez os fios de palha não se assemelhassem tanto a farpas que sussurram na epiderme, eriçando os pelos que não servem para empecilhar o sussurro. Abro os olhos. Só agora me apercebo de estar a ser flashada pelo clarão de luz que vem lá de cima. Fisgo as estrelas, que parecem pioneses inscritos numa infinita ardósia. Que memorandos fluorescentes afixarão elas nesse céu de ardósia? E que mensagem escreverão elas nesses memorandos fluorescentes?
Acho que adivinho: “Morremos, mas, ainda nos vês.” É verdade. Parte da luz que fisgo provém de estrelas que já morreram, mas que continuam a luz que agora mesmo fisgo. Como se a luz das estrelas se assemelhasse a frenéticos e constantes fade ins que continuam piscando depois do último fade out. Concluo serem as estrelas uma metáfora para a vida suspensa: não há tantos fade outs que, na verdade são fade ins? Como os finais dos filmes que vemos e que são, simultaneamente, inícios da introspeção sobre a sua narrativa. As memórias e os nossos que já se foram de nós funcionam mais ou menos assim. Há certas memórias que podem desvanecer, mas que continuam, de alguma maneira, a emitir luz. Como se um semáforo aceso ao fundo da estrada, numa manhã enevoada.
A primeira epifania a que hoje ascendo é de que o Sagan tinha razão: somos mesmo feitos de poeira estelar. Por seu lado, a segunda epifania é de que não está bem serem só as estrelas a contar-me memorandos que são histórias. Por isso, ofereço-me para lhes ser bardo de todas as noites. Um bardo que brada – pelo menos, neste montado a liberdade não foi fuzilada, por isso nada me impede de gritar. O grito volta a mim em eco. Os melros assobiam.
Afinal, o eco é meu, é dos melros, ou seremos um e será o eco nosso? Não. Não poderemos ser um só porque um de nós tem a vida suspensa, e o outro não – o melro continua libertino, e este montado quase-alentejano nem desconfia da liberdade fuzilada aos citadinos. Ou...será que nos complementamos, e a não suspensão da vida dele sirva para me aperceber da não suspensão da minha, também?
Afinal de contas, nas gaiolas voa-se menos, mas, pelo menos, voa-se; e basta um toque leve para que o bicho-de-conta se desenrole.
Ana Rita Rodrigues
Eterna teísta praticante de Letras, para além de Licenciada em Jornalismo e Comunicação. Diz que lhe seduz os anónimos, os quais entende como projetos esculpíveis através da escrita. Não sabe que coisa ser "quando for grande", mas sabe que essa coisa passará pela criação de histórias e recriação de gentes.