​voltar ao índice


Redentora Solidão

"Sentimentos como pinturas. Cheiro de tinta fresca, acabada de pintar nas paredes do meu coração. Gota a gota escorre seiva, escorre sangue, vermelho, escarlate, lava ardente de amor. O teu silêncio rasgou-me o peito. Num grito perdi-me, tamanha era a dor que me dilacerava. Julguei que morria! Mesmo agora, tal é a agonia que me assola, como se fosse tempestade, que já não sei se vivo ou se morri."

Deixo que a caneta deslize pelo papel. Logo eu que nunca fui dado à escrita em papel, pois era costume anotar sempre tudo o que precisava saber no telemóvel e no computador. É uma sensação tão agradável, a minha pele a deslizar sobre uma folha de papel e a sentir a sua textura. Até aprendi a gostar de cheirar a tinta da caneta sobre o papel assim que acabo de escrever.

A escrita, a música e os filmes e séries têm funcionado para mim como uma terapia para lidar com a angústia deste ano 2020 que parece durar anos, séculos. Espera-se uma espécie humana reinventada. Aguarda-se com expetativa a forma como a História será reescrita desde que tudo começou e de como poderá acabar. Não há até agora cem por cento de certeza de nada. Mal consigo ver televisão. Como selecionar e assimilar tantas informações? Sinto que todos nós somos como silenciosos peões em jogo dentro das suas caixinhas de isolamento. Mais coisas para continuar a filosofar espontaneamente de caneta na mão.

"O que é mentira? O que é verdade? Já nada sei. Só sei o que sinto. Só sei que sem ti morro um pouco mais a cada dia que passa. Não sei que nome dar aos dias que passo perdido sem ti. Escrevo entre lágrimas sobre o papel. Diluem a tinta da caneta, formando pequenas manchas que lembram pequenas pinceladas de aguarela. Tenho saudades da primavera em que te conheci. Só me recordo do inverno infindável em que habito desde aquele dia em que saíste da minha vida para não mais voltar. Saíste quase a correr, sem olhar para trás. Deixaste-me só, esvaindo-me em prantos de dor, na corda bamba entre a sanidade e a loucura."

Quem diria que encontraria tamanho prazer em refugiar-me na escrita em tão aterrador cenário como o de uma pandemia? É realmente uma terapia a escrita, como também o silêncio. Calam-se os carros e as irritantes buzinadelas e redescobre-se a divina glória, antes esquecida, que reside no canto dos pássaros. Somente eles continuam completamente livres e felizes. Às vezes invejo os pássaros pelo facto de serem animais não racionais. Que tolice a minha em achar que a ignorância da surreal realidade em e todos vivemos pudesse ser uma bênção! Ou antes pelo contrário? Continuo a escrever sobre nós dois.

"Deserto está o meu peito enquanto desejo o calor dos teus lábios, percorrendo cada centímetro da minha pele e sinto-me renascer com a frescura de um novo ser, quais gotas de orvalho ao romper do dia, no beijo prolongado de uma rosa em botão, na chuva abençoada que salva plantas, que salva cada uma das formas de vida que a superfície da terra percorrem, se perdem, se encontram e habitam. Que sede de ti, meu amor!

Move-se-me a mão, como que automaticamente, tateando o ar. Por momentos perco o controlo sobre mim mesmo. Volta o grito. Volta o pranto. Desconheço a minha própria voz. Que estranha forma de vida é esta que agora habita em mim? Exorcizo ainda algum demónio interior que agora bebe do seu próprio veneno de raiva e rancor? Apresso-me a passar para o papel tudo isto. As letras de algumas palavras ficam molhadas de lágrimas, mas acabam por me ajudar a acalmar.
"Amar-te é uma luta contra a gravidade. Quando dou por mim, perco a força que te roubei do último abraço que me deste e caio bem fundo dentro do abismo que assombra o meu ser, que me assola o peito outrora prado verdejante, ervas de prata quando havia luar. Chamo por ti ou chamo pelo meu anjo protetor, minha salvação?

Quero dar nome ao que sinto, mas à superfície do meu pensamento paira poeira negra, veneno de raiva que não reconheço como sendo parte de mim. Quem é o estranho que me olha fixamente, enquanto cambaleante, me apoio na fria loiça da bacia e lavo o rosto salgado de tantas lágrimas? O espelho meio quebrado mostra-me as várias faces da minha própria face. Desconhecidas faces deste ser que sou, seja qual for o seu novo nome.

Quis pintar o teu corpo junto ao meu, tatuá-lo na pele que se arrepia só de pensar nos teus dedos a percorrê-la, fazendo-me sentir vertigens de prazer. Não temias deixar-me explorar o terreno sagrado do teu corpo onde florescia todo o ser, nem me dar a conhecer novas sensações. Pudera eu perder-me em ti, meu bem querer, e não saber onde começa e acaba o meu corpo e o teu. Fundem-se os nossos corações, juntos num só. É loucura querer-te tanto ou mais que os raios de sol?
É perdição derramar a minha alma sobre a tua, como vela derretendo sobre papel, escondendo segredos num pergaminho? Recordo-te deitada a meu lado. Perco-me na recordação do teu corpo estremecendo debaixo do meu, do ouro líquido sobre as azuis luzes das safiras que guardas nos olhos. A tua voz, enquanto pedes que não pare de me agitar sobre ti, como ondas que rebentam contra os rochedos, soa tão distante na minha mente… "

Há quanto tempo estarei assim, meio desperto, meio adormecido para a realidade? O amor tudo salva, é certo e sabido. Mas quem diz que não é possível alguém morrer da dor de amar sozinho? Será que ela se esqueceu de mim? Esqueceu-se das risadas que dava a bom gosto, deliciada com as nossas brincadeiras entre lençóis, quando eu lhe soprava poemas ao ouvido?
Teremos vivido tudo isto juntos ou passo os dias perdido num qualquer sonho do qual fiz minha realidade e minha morada na solidão do presente? Suspiro por um passado fantasiado, assombrado por um futuro dúbio, sentindo na pele como será o desespero de uma mãe que aperta nos braços, enlouquecida, insistindo em embalar o filho, fruto de um amor morto à nascença. Assim ficou o nosso amor ou o que quer que tenhamos sentido e vivido juntos.

Percebo agora que passei a noite inteira a escrever. Nasce mais um dia. Que dia será? Perdem o sentido e utilidade os dias da semana e os dos meses. Rejo-me pelo sol. Ligo o rádio. Sorrio e suspiro perante a ironia do destino quando o locutor anuncia a canção que começa a tocar. A nossa canção. Resisto à vontade de desligar o rádio e dou por mim a redescobrir essa canção e a associá-la às boas recordações que guardo de ti, sem sentir o ressentimento do passado. Tão bom este rasgo de liberdade que o meu coração me salta do peito para as asas de um pardal a cantar lá fora. Canta e voa, ave abençoada, enquanto vou continuando a descobrir o amor pela escrita nesta redentora solidão!

​voltar ao índice

Ana Isabel Fernandes

Começou a dar os seus primeiros passos na escrita online há dezasseis anos, enquanto estudante universitária, em vários blogues focados no cinema, literatura e artigos de opinião. Neste ano de 2020, o mais desafiante da sua vida, decidiu dedicar mais tempo à sua velha paixão pela escrita, numa altura em que passaram doze anos desde que concluiu o Curso de Ciências da Comunicação, variante de Comunicação Social, pela Universidade do Algarve. Por isso «O Eco dos Pássaros» é a melhor oportunidade de mostrar o seu talento e se lançar na carreira da escrita.

Ana Isabel Fernandes
Próximo
Próximo

Adormeceste, Oleiro Meu