Nós Não Precisamos deles Sofia...
- Nós não precisamos deles Sofia... - disse o Gajo do Fogo, com mais um bafo no cigarro. - Culpar-nos é tão estúpido como culpar uma águia por voar.
A sua voz ecoava no meio da piscina grafitada, onde ninguém o ouvia e a luz do sol morria.
- E como está o Benfica? Aposto que ainda não deram a volta… Fuck, já não vejo bola há tanto tempo…
O oceano rugia como resposta. A escarpa da montanha onde a piscina tinha sido escavada, começava numa estrada abandonada e terminava numa praia sem nome.
Fecha os olhos e, emocionado, inspira fundo.
- You gotta hustle miúda. Eles não te vão dar descanso. Vão-te apontar todos os dedos que têm e dizer que fizeste tudo pelo qual não se querem responsabilizar. - pisa a ponta do cigarro, pega na mochila, eleva-se da piscina com facilidade e saltita até ao campo de ténis. - Imagina a cidade como os teus pais. Um dia o teu irmão cai, tu nem estavas com ele, mas levas uma sova porque devias ter estado.
Deixa a mochila na tenda que está montada no centro do campo. As espias estão atadas aos postes que, outrora, erguiam redes de jogo. Pega numa pedra. Dá uns toques em habilidade, como se fosse uma bola.
Daqui a uns minutos, quando tiver caído da escarpa e partido a perna em três sítios diferentes, o primeiro pensamento do Gajo será: começo a ficar à baliza.
Remata a pedra para o céu e dispara fogo da mão na sua direcção. Ao fundirem-se, pedra e fogo tornam-se meteoro: não contra a Terra, mas pela Terra. A velocidade de ascensão multiplica-se muitas vezes.
- Caga neles Sofia! Faz a tua própria cama, voa, sê verdadeira e essas merdas… - olha para o topo da escarpa, de onde a rapariga de quinze anos tinha aparecido e desaparecido. Repara num tronco morto que de lá se inclina. - E podias ter ficado. Fazia-te bem ouvir e fazia-me bem falar...
O Gajo mora “por aí” há tempo demais.
Aos oito partiu os dois dentes da frente: tranquilo, eram de leite. E ao menos marcou golo ao Miguel. A mãe do Miguel trabalhava com a mãe do Gajo. O Miguel sempre gostou de agarrar e o Gajo de dar: por isso faziam sempre dupla no dois para dois.
Aos dezasseis beijou a Maria a meio de duas batatas fritas. Foi o primeiro beijo de ambos. A Maria não era muito gira nem a mais carismática, mas mostrava promessa. E não se importava de sair a meio das aulas para análises biológicas profundas. Esta combinação de potencial e disponibilidade de parte a parte, fez com que ficassem juntos durante mais tempo do que qualquer par da escola: três anos.
Aos dezanove teve de trabalhar durante o Verão: a renda em Lisboa não estava barata. O Miguel dizia que não se importava de pagar o quarto durante uns tempos, mas o Gajo tinha os seus princípios. A Maria pediu-lhe para tirar uns dias para aproveitarem a praia, mas o Gajo preferia garantir que não lhes faltava nada durante o ano. O único emprego que não o obrigava a abrir atividade nas finanças era a apanha da fruta. Um dia laranjas, outro dia morangos. Um dia maçãs, outro dia bananas. Um dia saltou-lhe fogo das mãos. A sua reacção foi lenta e incrédula. Uma folha ateou um ramo, um ramo ateou uma árvore, uma árvore ateou o resto. Enquanto os outros trabalhadores discutiram, desesperados, sobre a origem do incêndio, o Gajo calou-se. Já tinha atenção que chegasse pela carapinha. A última coisa que precisava era de mais motivos para o olharem de lado e desconfiarem de cada movimento que fazia.
Escondeu o seu poder, treinando-o e aperfeiçoando-o em segredo.
Até apanhar a Maria a foder o Miguel.
- Escultura Sofia! - gritou a meio da subida da escarpa.
- Começar pela madeira até chegarmos à pedra e ao marfim! Por uma vez moldamos em vez de destruirmos, já imaginaste?
Agarra uma raíz e finca o pé na terra seca. O tronco que lhe chamou a atenção estava a pelo menos quinze metros de altura. Ele já estava a catorze.
- Se conseguir moldar alguém,
- grita, agarrando um braço do tronco e libertando o peso que tinha no pé de apoio.
- já não preciso de ninguém!
Esse braço (ligeiramente curvo, metro e sessenta) separa-se do tronco.
O Gajo do Fogo (poncho, metro e oitenta) é apresentado à gravidade. E às pedras. E aos montes. E ao chão.
- Começo a ficar à baliza
Leva a mão à boca e cospe. A tremer de dor, com um controlo minúsculo sobre as suas acções, obriga-se, lentamente, a limpar o sangue que cuspiu às calças. Apalpa o bolso. Sente o maço. Raspa a mão escoriada na ganga rasgada. Centímetro a centímetro, a dor vai-se sobrepondo. Inspira fundo. Com a brusquidão de um escalpamento, retira o maço do bolso. Está com lágrimas nos olhos e um sorriso delirante pela pequena vitória.
Abre-o. Está vazio.
Chora. Grita.
Depois do choque passar e a voz falhar, o Gajo retira o poncho e amarra-o com paus à volta da perna.
O pequeno meteoro, que minutos antes tinha partido numa missão de defesa planetária, regressa e incendeia uma raíz. E uma raíz incendeia a escarpa. E a escarpa o resto.
O Gajo, rodeado pela sua criação, engole o orgulho e agarra o braço de madeira que o fará coxear até ao fim dos seus dias.
A quinze metros de altura, o tronco, que numa outra versão desta história está a ser esculpido em forma de uma memória agradável, geme até se desfazer em cinzas.
Na jornada do herói, a dor maior é provocada pela saída da zona de conforto. Com o fogo a deflagrar atrás de si, o Gajo pega na mala e deixa a tenda a arder. Tentando não pensar nos três pontos muito específicos onde a perna se desfaz a cada movimento, começa a subir. A estrada abandonada segue sempre em frente. Paralelamente, florestas ardidas fazem pandã com o seu estado de espírito. Não há animais, pessoas, veículos ou construções. Há esqueletos de edifícios e rebentos verdes. Embora nas trevas, o Gajo reconhece cada canto destas paragens repletas de raivas antigas. Quando a luz do sol surge, já é pelo meio de pinheiros. O alcatrão aclara, os sinais de “PROIBIDO” repetem-se e os cruzamentos surgem. Ao fim de uma hora ou duas, a cidade aparece no horizonte.
- Estamos quase Sofia… Estamos quase…
“Estou quase, estou quase…”
Procuraram-no. Todos os verões falam dele, sem o mencionarem por nome. Nas ruas. Nas televisões. Nos jornais. Sempre que há fogo, apontam-lhe todos os dedos que têm. Ostracizam-no. Todos os anos espalham cartazes de “PROCURA-SE GAJO DO FOGO” com um número telefónico que já não funciona e uma recompensa que ninguém vai receber.
Mas hoje, ao chegar à cidade, o Gajo olhou para onde os seus cartazes costumavam estar e não os encontrou. Em vez de uma foto desfocada sua, está a cara da Sofia: olhos grandes, cabelo pelos ombros, sorriso simples, óculos.
“Procurada pela morte de cinco…”
- Oh Sofia… - toca levemente na fotografia da única pessoa que o procurou sem malícia. A única pessoa que o ouviu.
Coxeia pela cidade, sem movimento. É cedo mas, normalmente, já existiria um leve corre-corre capitalista. Um rapaz de boné para trás aproxima-se usando uma máscara clínica por cima do rosto.
- Já’á máscaras na loja! - diz o rapaz ao reparar que o Gajo não usava uma e estava num estado lastimável. - Se ‘tás a vir do hospital não devias andar sem máscara, boy!
- Caga... - diz outro rapaz que o segue, sem máscara, e com um pitbull malhado pela mão. - Ele ‘tá a levar a cena bué a sério...
O pitbull cheira e lambe a mão ensanguentada do Gajo antes de prosseguir com os humanos. E afastam-se tranquilamente, sem prestar atenção a um dos homens mais procurados do país.
O Gajo desvia as fitas presas na porta de entrada da pequena mercearia, dirigindo-se ao balcão. A olhar para uma televisão minúscula está um homem de avental e máscara.
- As máscaras estão a dois euros cada, quantas queres?
Na televisão misturam-se imagens de multidões em luta e políticos de máscara.
- Um maço de Newport... - retira uma carteira da mala. Olhando novamente para a televisão, acrescenta... - E uma máscara.
“... os arguidos, que se encontravam a ser abordados pelos agentes da PSP, investiram o seu corpo contra os corpos de dois agentes…”
Imagens gravadas por telemóvel mostram habitantes de um bairro degradado a serem espancados por polícias.
- Acreditas que isto ainda não está resolvido? Já passou quase um ano… - diz o merceeiro, ao colocar o tabaco e a máscara em cima do balcão.
- Qual é o caminho mais rápido para o hospital?
O homem, pela primeira vez, tira os olhos da televisão e olha para o Gajo do Fogo de cima abaixo.
- Confia… A última coisa que tu queres agora é ir até ao hospital! Mais vale descansares e esperares por isto passar... Eu não te conheço de algum lado?
O Gajo olha de soslaio para o merceeiro e coloca a máscara no rosto.
Lembra-se:
- Como é que está o Benfica?
- O Benfica? O Benfica ‘tá igual a nós. ‘Tá à espera.
Passam imagens de agentes armados com shotguns na Avenida da Liberdade, de jovens a protestar contra o racismo, de feridas provocadas por balas, de incêndios nas florestas… E da Sofia: a gritar, a correr com a sua mochila de campismo às costas, a disparar fogo na direcção das câmaras e das árvores…
- Acreditas nisto? Pegou fogo a cinco miúdos da idade dela e desapareceu…
Silêncio.
- Vou precisar de mais tabaco. - diz o Gajo.
Ao sair da mercearia, tira a máscara, acende um cigarro com a ponta do dedo e atraca com força.
Quatro miudinhos do bairro fazem dois para dois. Usam os bancos de jardim como balizas e uma bola de ténis. Os risos ouvem-se perfeitamente, mesmo debaixo das máscaras… É um tipo de alegria que o Gajo já não consegue sentir.
Uma das crianças faz um remate desajeitado à meia volta, a bola ressalta no guarda-redes contrário e vai bater com estrondo na perna partida do Gajo, provocando uma trovoada de palavrões gritados.
Os miúdos fogem em várias direcções.
Com um golpe do tronco que o suporta, o Gajo faz a bola voar para longe. Afasta-se a coxear na direcção de onde veio. Ouve, nas suas costas, as crianças a regressarem devagar. Na sua direcção dirigem-se os rapazes com o pitbull.
- Oh mo boy! Deixa lá dar aí uns toques! - diz o rapaz com o boné para trás ao chegar perto dos miúdos. Desta vez é ele que tem o pitbull nas mãos.
O Gajo começa a ouvir gritos queixosos dos miúdos e o rosnar do cão. Continua a afastar-se. Os gritos queixosos tornam-se em gritos de medo e desespero.
Continua em frente, dando bafos rápidos e nervosos no tabaco.
Pensa na Sofia. Tinha-lhe dito para reagir. Para não ter medo do que queria ser e fazer.
Pensa no Miguel e na Maria. Tinhas-lhe dito que ia ficar tudo bem.
Pensa nas máscaras, nos habitantes dos bairros a serem punidos pela justiça, na violência, no terror, no sangue, no fogo...
Pára.
Olha para a estrada que serpenteia de volta à praia sem nome.
Olha para a perna que partiu enquanto tentava não precisar de ninguém.
E, finalmente, dá meia volta e coxeia em direcção aos que precisam dele.
Diogo Simão
Diogo começa o seu percurso artístico no teatro, tendo trabalhado e estudado, entre outros, com Lídia Franco, João de Brito, Bruno Schiappa, Cláudia Lucas Chéu, Jorge Louraço Figueira, Pedro Monteiro e Ana Cristina Oliveira. Em 2014 criou o grupo MaisMacacos que levou à cena 3 peças escritas e encenadas pelo próprio. Estreia-se no cinema em 2013, trabalhando em mais de 50 produções desde então. Realizou 6 filmes, tendo granjeado um prémio de melhor realizador na Roménia, figurado no Shortfilm Corner do Festival de Cannes em 2018 e em dezenas de festivais pelo mundo inteiro. Mais recentemente foi produtor de uma trilogia de documentários gravados na Polónia, no Perú e em Portugal.
É licenciado em Ciências da Comunicação pela UAlg, com formações na National Film and Television School (Londres, Inglaterra), na HarvardX (Cambridge, E.U.A), no MoMA (Nova Iorque, E.U.A) e na Ball State University (Indiana, E.U.A). Foi produtor e curador do festival de cinema Shortcutz Faro de 2015 a 2020, cronista em vários meios de comunicação e co-autor de três livros.