O Cavaleiro da Sombra
Cabelos longos, desgrenhados, com algumas madeixas coladas ao rosto devido à abundância de suor. Respiração ruidosa. O ar que respira depressa se transforma em chamas que lhe ardem nos pulmões. A rapariga corre pela floresta naquela noite de lua cheia que, devido à aproximação de nuvens ameaça tornar-se mais sombria. O seu jovem rosto está desfigurado pelo mais puro e absoluto terror.
Os músculos das pernas parecem querer rebentar perante o esforço quase sobrenatural a que estão a ser forçados. A rapariga está prestes a sucumbir perante o cansaço, contudo o medo que se misturou com o seu sangue e lhe faz bater violentamente o coração, dá-lhe adrenalina suficiente para continuar naquela já longa corrida pela sua sobrevivência. Nunca olha para trás. Tem medo de tropeçar. O menor
descuido pode deitar a perder o avanço que ganhou relativamente ao seu perseguidor.
Quanto tempo mais irá aguentar? Já passou por todos os sítios onde em vão, tentou esconder-se. Agora está numa clareira, uma parte da floresta onde é impossível encontrar um esconderijo. Os troncos das árvores são magros e os ramos pendem mirrados, como garras intermináveis de uma desconhecida fera. Feios troncos, outrora belos, balançavam ao vento, quem sabe rogando por misericórdia que as arrancasse do chão e terminasse com a sua miserável existência. Era como se uma força maligna lhes tivesse sugado toda a vida que outrora neles existira para poder viver. Teria o perseguidor da rapariga algo a ver com a devastação na clareira da floresta?
Sobressalta-se quando começa a distinguir cada vez mais perto o som do relinchar furioso do cavalo do seu perseguidor. As lágrimas escorrem-lhe pelo rosto, ao mesmo tempo que murmura orações a todos os santos que conhece. Pede a Deus a salvação perante uma morte iminente. Desiste. Rende-te a mim, sussurra-lhe a voz doce e tentadora do cavaleiro da sombra. Como é que o demónio consegue ter tal voz?
Todos os anos os habitantes da vila rezam pela vida das suas filhas quando se aproxima a chegada do Inverno. Tudo isto porque com ele chega também um cavaleiro. Um demónio, segundo quem o vê mais de perto. Aparece em três noites seguidas de lua cheia. Se na terceira noite não lhe for entregue uma jovem virgem com cuja pureza ele se possa saciar, aprisionando-lhe depois a alma, a vila será
amaldiçoada.
Não haverá chuva. Nem uma só gota fresca de orvalho cobrirá os campos de cultivo. A terra tornar-se-á estéril e não haverá colheitas. Então a fome depressa chegará à vila, de mãos dadas com a peste. É sempre preciso um sacrifício para o bem geral. E aquela fora a vez da rapariga. Melinda, era o seu nome. Uma formosa jovem de dezassete anos feitos precisamente naquele dia, o dia em que o próprio pai a entregou
ao cavaleiro. Ficara combinado que, com a oferenda de Melinda, a vida dela passaria para um dos seus dois irmãos, o que nascera surdo-mudo. Assim passaria ele próprio ser outra oferenda, desta feita ao mosteiro no coração da serra, em troca de favores dos monges, um hábito que muitas famílias perpetuavam.
Numa situação normal, por aquela altura as bestas selvagens já teriam reclamado o sangue e a carne fresca da rapariga, mas tinham desaparecido perante a presença daquele que os dominava. A camisa de noite que vestia estava feita em farrapos, deixando antever muito do seu corpo harmonioso. Os seios fartos que balançavam com a corrida. Os arranhões nos braços e nas pernas sangravam e os pés descalços estavam em chaga. Mas por maior que fosse a sua dor, não podia parar.
Então, subitamente, as criaturas da noite voltaram, como que respondendo ao chamado do seu mestre. Corujas medonhas surgiam com um amarelo doentio nos olhos, esvoaçando ao acaso, com o seu canto de mau agoiro. O uivo de um lobo sobressaltou ainda mais a rapariga, que acabou por tropeçar numa pedra quando atravessava uma clareira. O cansaço levou a melhor e não conseguiu mais erguer-se. Apenas conseguiu mexer a cabeça e viu o cavaleiro a aproximar-se, com a sua capa a esvoaçar, cravejada de rubis, tal como o contorno do rosto e os olhos da máscara que lhe escondia o rosto. Finalmente estava diante da sua presa.
Melinda. Sabia como se chamava porque cobiçava a sua alma desde a noite em que a vira ainda bebé, nos braços da mãe, numa noite em que lhe fora oferecida uma virgem na casa ao mesmo ao lado da dela. Desceu do cavalo e aproximou-se dela.
Misericórdia! Misericórdia, pelo amor de Deus!, pedia-lhe ela, num pranto. Agradava-lhe o desespero que via nos seus olhos. Mas nada o deteve. Arrancou-lhe a camisa esfarrapada e deteve-se a apreciar demoradamente o corpo da rapariga, resplandecendo ao luar. Tirou a capa e estendeu-a sobre as ervas. Pegou na rapariga e deitou-a sobre ela. Desistira entretanto de lutar. Já não chorava nem implorava pela
sua vida. O seu olhar reflectia agora uma invulgar calma, a aceitação da morte.
Desembainhou a espada e pousou-a no chão. Brilhava como prata. Retirou a máscara e a rapariga deixou escapar um murmúrio de assombro perante a beleza daquele rosto. A luz da lua cheia dava a Melinda uma boa visão dele. Teria um ar angelical, não fosse o olhar felino e sorriso provocante. A sua mente não colocou barreiras ao encantamento que se apossou dela. Todo o temor que sentia cedera lugar ao mais
ardente desejo que alguma vez sentira. Ansiava pelo toque do cavaleiro como nunca antes ansiara por outro homem. Ele leu-lhe os pensamentos e depressa se deitou sobre ela, possuindo-a no corpo e na alma. Os lábios dele sabiam bem, teria a morte tão doce sabor? Poderia o mal oferecer-lhe o maior prazer que alguma vez conhecera? Melinda deixou-se conduzir pelo seu perseguidor, agora transformado em seu amante.
Lágrimas de alegria brotaram dos seus olhos e ela sorriu, sem se importar se teria ou não cedido à loucura e ao pecado. O cavaleiro deteve-se, espantado com a total entrega daquela rapariga. Ela própria procurava os lábios dele, insaciável. Melinda, minha doce Melinda! Nunca nenhuma outra rapariga que escolhera para o ritual de sacrifício se tinha comportado daquela maneira. Afastou-se dela, surpreendido pela
mais profunda comoção que alguma vez sentira. Pela primeira vez em mais de mil anos, sentiu o bater do coração no seu peito e quando desistiu de conter as lágrimas sentiu-se renascer.
A rapariga sentou-se, ainda com um sorriso nos lábios. Havia nela algo diferente. Algo sombrio que viera ao de cima. Encontrando-se o cavaleiro sentado de costas para ela, procurando disfarçar a emoção que se apossara dele não conseguiu ver quando Melinda se levantou e, de joelhos puxou para si na espada de prata. Depois pegou na espada e apoiou-se nela para se levantar. Passou-a de uma mão para a outra como se tivesse apenas o peso de uma pluma.
Nesse momento que o cavaleiro apercebeu-se finalmente do que se estava a passar.
A jovem colocou-se à sua frente. A maneira como levantava a espada não deixava dúvidas sobre o que ia fazer a seguir. Era demasiado tarde.
O cavaleiro olhou-a nos olhos e riu. Vamos lá, minha amada Melinda! Liberta-me, por favor!, pediu. Num golpe rápido ela cortou-lhe a cabeça e o sangue jorrou-lhe para cima. O corpo caiu lentamente à medida que a alma dourada daquele infeliz prisioneiro de uma maldição sem fim subia ao céu. Cumprira a sua missão e agora passara o peso do seu fardo para que outra pessoa o carregasse. E assim sucederia
ao longo os séculos.
Quando Melinda tomou consciência do que acabara de fazer, não havia forma de fugir ao seu destino. As nuvens taparam a lua cheia e começou a trovejar. As forças das trevas do lado sombrio que emergiam do mais profundo do seu ser, rodeavam-na e causavam-lhe uma dor atroz que a fazia contorcer-se sobre as ervas. O sangue do cavaleiro que jazia a seu lado e que ainda lhe escorria pelo peito e pela barriga foi
absorvido pela sua pele sedenta.
Foi então que o seu corpo ganhou a aparência daquele que acabara de matar. Viu o corpo no qual nascera caído no chão e a cabeça decepada logo ao pé, com os cabelos longos levemente agitados pelo vento. Um corpo de mulher que poucos momentos antes havia pertencido a Melinda. Agora teria de escolher um qualquer nome masculino.
Nascera um novo Cavaleiro da Sombra. Tinha a armadura dele colocada, a espada já embainhada. Por instantes, sentiu-se angustiada pela morte da sua pureza e bondade. Contudo, uma vez que as trevas agora alimentavam o seu ser, depressa se recompôs e encaminhou-se para o seu novo destino, apanhando a máscara do chão e colocando-a. O cavalo mostrou-se dócil, não estranhou o novo cavaleiro que o
montou, e galopou através daquela noite sombria e refrescada pela chuva que começava a cair.
Ana Isabel Fernandes
Começou a dar os seus primeiros passos na escrita online há dezasseis anos, enquanto estudante universitária, em vários blogues focados no cinema, literatura e artigos de opinião. Neste ano de 2020, o mais desafiante da sua vida, decidiu dedicar mais tempo à sua velha paixão pela escrita, numa altura em que passaram doze anos desde que concluiu o Curso de Ciências da Comunicação, variante de Comunicação Social, pela Universidade do Algarve. Por isso «O Eco dos Pássaros» é a melhor oportunidade de mostrar o seu talento e se lançar na carreira da escrita.